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  • cleverfernandes196

VIDA, SONHO E TRAGÉDIA

Muitas pessoas vivem a vida de forma idealizada, numa inversão da composição poética do grande Antônio Carlos Belchior que canta: “viver é melhor que sonhar; eu sei que o amor é uma coisa boa; mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa. Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina”. Os idealizadores da vida querem transformar a vida em sonho, pois para eles sonhar é melhor que viver, já que no sonho acordado não existem perigos e nem tragédias. Porém, não existe vida sem tragédia, ela faz parte da vida e “viver é negócio muito perigoso…” (GUIMARÃES ROSA, 2001, p.26). Tragédia é primeiramente um gênero literário cuja ação ordinária é determinada por acontecimentos fatais, funestos, mas também é uma realidade demasiadamente humana quando deixa de ser literatura ou produção cinematográfica e torna-se realidade. Na arte, a tragédia nos encanta e nos alegra pela potência criativa do artista, pois “o fundo da arte […] é uma espécie de alegria, sendo mesmo este o propósito da arte. Não se pode ter uma obra trágica, pois há necessariamente uma alegria em criar” (DELEUZE, 2006, p.174). Ninguém sofre assistindo ou lendo uma obra de arte trágica, por maior que seja a produção artística, ela é sempre menor que as tragédias de qualquer pessoa. Por isso, quando saímos da arte e entramos na vida de carne e osso, a tragédia real nos faz sofrer demasiadamente. As tragédias cinematográficas ou literárias nos afetam, mas nunca como somos impactados pelo anuncio de uma tragédia no mundo da vida, ela nos suscita as sensações de terror e piedade. Com a notícia, quase sempre massificada pela mídia, somos tomados de grande emoção, a tristeza faz morada em nosso coração e ficamos suspensos no ar sem acreditar no que estamos ouvindo e/ou assistindo nos noticiários. O próprio tempo parece não se mover, fazemos naquele instante a experiência da eternidade, onde não existe o fluir temporal. Parece que o mundo parou, pois, a dor intensa paralisa o corpo, a mente, e ficamos sem chão. Esses acontecimentos trágicos nos retiram da zona de conforto da vida, a notícia da morte de alguém nos afeta sobremaneira e essa afecção violenta nos faz pensar sobre a fragilidade e finitude humana, quanto mais próximos somos da pessoa que partiu maior a intensidade do que sentimos e pensamos. E quando essa noticia é de morte coletiva, mesmo quando não conhecemos as pessoas falecidas, somos levados por uma onda de tristeza e comoção nacional ou mundial. A perda das pessoas que amamos ou de grupos de pessoas é sempre devastadora, sofremos a hostilidade do tempo sobre nossa cabeça e coração. Gaston Bachelard escreveu: “Como o luto mais cruel é a consciência do futuro traído e, quando sobrevém o instante lancinante em que um ente querido fecha os olhos, imediatamente se sente com que novidade hostil o instante seguinte assalta nosso coração” (2007, p.19). O anuncio da morte sempre chega cedo demais e no caso das tragédias ela ainda é mais dilaceradora, mas em ambos os casos ela carrega também a certeza do fim do sonho. O futuro não existirá mais, ele foi traído. Neste instante do anúncio queremos explicações, por que aconteceu tal coisa? Diante da absurdidade da morte violenta e súbita, queremos saber as razões. Indagamos: quais são as razões dessa tragédia? Ficamos como loucos para descobrir as causas, as circunstanciais, os culpados e esperamos definir as negligencias que patrocinaram aquela situação trágica. Mas, a questão é que não existe razão. Na verdade, Sartre escreveu que, “o mundo das explicações e das razões não é o da existência” (1986, p.191). A construção dos discursos para explicar ou listar as razões não confortam, em alguns casos as explicações e as razões produzem revolta, pois a tragédia como acontecimento fatal é o absurdo. Não existe conforto no absurdo. Além do mais, este esforço explicativo cai em outro problema, qual seja, o de desejar mais lógica aos acontecimentos da vida do que eles de fato têm, pois “as frases nos enganam, porque a linguagem nos impõe mais lógica do que tem muitas vezes a vida, e que o que há de mais precioso em nós é o que permanece informulado” (GIDE, 1986, p.1984). Diante do trágico, o silêncio é a melhor forma de expressar nossa perplexidade. Aquele um minuto de reverente silêncio no inicio das partidas de futebol é muito mais expressivo e precioso do que milhões de palavras de condolências. A morte impõe o silêncio. Como explicar para o pai ou mãe a morte de seu filho? Quais palavras podem confortar a esposa que acaba de saber da morte de seu amado? Que tipo de argumento vai persuadir ao filho que a morte do seu pai é uma ordem natural, pois o certo é filho sepultar o pai e não o contrário. O certo é que a morte sempre coloca um fim nos sonhos, nos projetos. Ela vem ceifar os nossos projetos em andamento. Aquelas ações que desenvolvemos com paixão, com vontade, que dão sentido a nossa existência. No final de sua maior obra “O Ser e o Nada”, Jean-Paul Sartre escreveu: “Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo tempo, constituir o em-si que escape à contingência sendo fundamento de si mesmo, o ENS CAUSA SUI que as religiões chamam de Deus. Assim, a paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem se perde enquanto homem para que Deus nasça. Mas a ideia de Deus é contraditória, e nos perdemos em vão; o homem é uma paixão inútil” (SARTRE, 1997, p.750). Se a tragédia transforma a existência humana numa paixão inútil é porque não queremos viver a vida, mas sim viver sonhos. A tragédia com certeza rouba o tempo futuro, mata os sonhos e elimina o sabor da existência, porém é necessário seguir apesar do sofrimento e da dor. O show da vida tem que continuar, temos que sorrir diante dos ataques trágicos da vida. Claro que não é nada fácil, nestes instantes a vontade é não sair da cama, ficamos num estado de estupor, paralisados pela dor. Anestesiados. Mas precisamos seguir a vida, sonhando e resinificando os sonhos traídos pelo tempo, pois se não fizermos este esforço, parece que Schopenhauer tinha razão: “Nada merece nosso esforço, todas as coisas boas são apenas vaidades, o mundo é uma bancarrota e a vida, um mau negócio, que não paga o investimento”, mas isso apenas quando queremos transformar a vida em sonho, quando desejamos um jardim das fantasias neste trágico vale de lágrimas (1953, p.125). É preciso aceitar e assumir a vida como ela é, naquilo que o Nietzsche de forma primorosa denominou de AMOR FATI! Isso significa reconhecer nossa temporalidade e vulnerabilidade, não somos eternos. Há qualquer instante podemos morrer. Assim, é essencial perceber que o tempo é um investimento que devemos fazer da melhor forma possível, pois um dia vai acabar. Não temos tempo a perder. Por isso, podemos e devemos nos questionar: Como estamos investindo o tempo em nossas relações? Temos aproveitado os preciosos momentos de convivência ou desperdiçados com pequenos problemas? Estamos vivendo ou apenas sonhando? Conscientes da brevidade da vida, é preciso viver intensamente cada instante, eles são oportunidades singulares e jamais se repetem. O tempo não para e nem retorna, ele é um fluir. Por ser um devir permanente, não temos certeza que amanhã estaremos vivos para continuar compartilhando nossa existência com as pessoas que tivemos o prazer de conhecer e conviver. Por isso, é preciso aproveitar o momento, afinal, viver é melhor que sonhar apesar das possíveis tragédias na e da vida.


Referencias:


BACHELARD, Gaston. Intuição do Instante. São Paulo: 2007.

BELCHIOR, Antônio Carlos. Como nossos pais. Álbum Falso Brilhante, 1976.

DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.

GIDE, André. Frutos da terra. São Paulo: Riográfico, 1986.

GUIMARÃES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. 19.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

SARTRE, Jean-Paul. A nausea. Rio de Janeiro: Record, 1986.

___. O Ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria na vida. São Paulo: Melhoramento, 1953.

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