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  • cleverfernandes196

A TERCEIRA MARGEM DO RIO DE GUIMARÃES ROSA



O conto A terceira margem do rio de Guimarães Rosa é sem dúvida um texto impactante, nos faz pensar no primeiro momento e continua nos provocando depois de muito tempo. E posso afirmar isso pois, meu primeiro contato com ele foi quando estava fazendo minha graduação em filosofia, e, até hoje continuo pensando nos enigmas lançados por este grande escritor mineiro. O conto nos coloca diante de um acontecimento, um pai de família, nas palavras do filho - narrador do conto - um "homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação". Este homem comum decidiu fazer uma canoa e se lançar no rio, não para uma volta, ou para pescar, ou para apenas remar de quando em vez, sua intenção era a partir daquele momento viver no meio. Nem num lado e nem no outro, exatamente no meio do rio. Os impactos dessa decisão são sofridos por todos os familiares e amigos. O que aconteceu com ele? Endoideceu? Estava doente? Estava pagando uma promessa? Foram levantadas várias hipóteses, entretanto, como enigma Guimarães não nos deixa saber as razões dessa ação, para alguns o verdadeiro desatino. Sem alegria ou cuidado, sem dizer palavra o ordeiro pai vai, mas não vai embora, pois está ali no rio, numa proximidade distante, pois como nos conta o filho angustiado: "Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia." O paradoxo do ir e permanecer, ele não foi a nenhuma parte, ficava apenas no meio a meio do rio. Um ato estarrecedor, produzindo um tipo de separação entre o real e a realidade, "aquilo que não havia, acontecia". Neste conto Guimarães Rosa é um filósofo, nos faz pensar a vida como um rio que estamos no entre. Não podemos saltar nem de um lado, nem do outro. Se pensarmos um lado como o nascimento e o outro como a morte, estamos no meio, na travessia complicada onde acontece a vida. Mas, mesmo parecendo coerente pensar o rio como vida, a materialidade do conto não se limita, somos lançados para fora dessa trincheira analítica, pois o rio não é a vida. O rio é aquilo que é. Na sequência do conto, Guimarães Rosa nos faz pensar nos desdobramentos da ação do pai. Ano após ano, aquele homem no meio do rio. A filha se casa, tem filho, as várias tentativas de manter contato com o pai, diante e próximo, são frustradas. Muita dor, a dor do silêncio, o sofrimento da palavra não dita, da ausência do pai na rotina familiar. Dor expressa nessas palavras narradas pelo filho que ficou: “Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos”. Pois, a filha casada após a decepção de tentar mostrar o neto para o avô e nada conseguir, resolveu partir para longe, e sua mãe pouco tempo depois também resolveu ir morar com a filha. Apenas o narrador fica, como se fosse responsável pelo pai no meio do rio. Ele que no início furtava comida para deixar na margem para o pai comer, diz que "surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir". Ela fingia não saber, mas sabia que o filho se colocou no encargo de alimentar o pai, de colocar de tempo em tempo novas roupas para ele. O texto é atravessado de angústia... O narrador não tem explicação, apenas vai contando os impactos na vida deles após a decisão do pai de viver no meio do rio. Ele carrega um sentimento de culpa, sem saber qual ou porque sentir aquilo. Preso, como que por grilhões invisíveis, ao pai que lhe abandonou. Apenas no fim, do conto e quase de sua vida, é que consegue se desvencilhar, mas, mesmo assim, com muito sofrimento. A decisão de não fazer o que disse que faria produz outro tipo de dor no filho abandonado, quando ele decide abandonar o pai, por medo de assumir o lugar do pai na canoa. O medo do fim do silêncio, pois o pai não dizia palavra a muitos anos, ele foge do contato do pai. Os últimos parágrafos são dignos de transcrição, nos escreveu Guimarães Rosa:

"Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto… Agora, o senhor vem, não carece mais… O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!…” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia… Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio."

Conto radiante, e teimosamente retornado ao rio como vida, podemos constatar que estamos numa canoinha nessa água que não pára, e vamos rio abaixo, rio a dentro, rio a fora fazendo nossas escolhas. Como um rio, a vida tem um fluir em uma única direção, para o fim inexorável, e diante dessa verdade o narrador faz seu desabafo: “Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento”. A vida é “demoramento”, ou, como também disse Deleuze citando Fitzgerald, “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição”, lenta e dolorida. A arte produz pensamento e também produz arte. Caetano e Milton Nascimento produziram uma linda canção inspirada no conto de Rosa, com a qual termino este texto.

A Terceira margem do rio

"Oco de pau que diz:

Eu sou madeira, beira

Boa, dá vau, triztriz

Risca certeira

Meio a meio o rio ri

Silencioso, sério

Nosso pai não diz, diz:

Risca terceira

Água da palavra

Água calada, pura

Água da palavra

Água de rosa dura

Proa da palavra

Duro silêncio, nosso pai

Margem da palavra

Entre as escuras duas

Margens da palavra

Clareira, luz madura

Rosa da palavra

Puro silêncio, nosso pai

Meio a meio o rio ri

Por entre as árvores da vida

O rio riu, ri

Por sob a risca da canoa

O rio viu, vi

O que ninguém jamais olvida

Ouvi, ouvi, ouvi

A voz das águas


Asa da palavra

Asa parada agora

Casa da palavra

Onde o silêncio mora

Brasa da palavra

A hora clara, nosso pai

Hora da palavra

Quando não se diz nada

Fora da palavra

Quando mais dentro aflora

Tora da palavra

Rio, pau enorme, nosso pai"

Composição: Caetano Veloso / Milton Nascimento.


P.S. Acesso ao conto A terceira margem do rio de Guimarães Rosa, basta clicar no link: https://contobrasileiro.com.br/a-terceira-margem-do-rio-conto-de-guimaraes-rosa/.


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