Pensar a dinâmica dos afetos em Spinoza passa necessariamente por definir o que são os afetos ou afecções para ele, e, no inicio da terceira parte da Ética, Spinoza escreveu: “por afecções entendo as afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções“. Desta forma, nosso corpo no mundo esta sujeito a ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir pode ser aumentada ou diminuída. Além disso, em toda experiência, encontros e relações entre corpos geradores de perdas ou ganhos de potência sofremos varias transformações e conservamos as marcas destas em nós. Estas coisas ou pessoas que afetam nossos corpos são causas de nossas alegrias, ou tristezas, e todas são frutos de nossos desejos. Para Spinoza alegria, tristeza e desejo são os três afetos fundamentais, tipo as cores primarias que a partir delas é possível compor todo arco-íris. Da mesma forma a partir destas três afecções humanas básicas temos um Caleidoscópio de afetos ou sentimentos. O pensador assim define cada um dessas afecções:
“I. DESEJO é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada a fazer algo por uma afecção qualquer nela verificada”
II. A ALEGRIA é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior.
III. A TRISTEZA é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor“
(Ética III, Definições das Afecções)
Desejo, alegria e tristeza todos os sentimentos humanos estão ligados a eles, deles derivam e são compostos. Se existem 50 tons de cinzas, existem infinitos tons de alegria e, ao mesmo tempo, de tristezas relacionadas diretamente com os nossos desejos, assim, voltamos à velha e sempre nova questão sobre o desejo em Spinoza.
O desejo é a essência humana, a maior das afecções e este sentimento são capazes de nos dominar, então até que ponto nós somos responsáveis por nossas atitudes? Na proposição 48 da parte II da Ética temos os primeiro sinal de uma possível resposta. Spinoza lançando uma enigmática sentença: “não há, na mente, nenhuma vontade absoluta ou livre: a mente é determinada a querer isso ou aquilo por uma causa que é, também ela, determinada por outra, e esta última, por sua vez, por outra, e assim até o infinito“. Com essa sentença, entramos em uma cadeia infinita de causalidade, os desejos não são frutos de um ato livre, mas o fim necessário, pois só desejamos o que desejamos porque existe uma cadeia infinita de causas, que nos leva a desejar isso e não aquilo. Assim, não poderíamos desejar outra coisa, o desejo é inexorável, desejamos o que desejamos, pois necessariamente a composição causal de encontros não poderia ser diferente.
Em outra obra, Spinoza tem uma ideia muito interessante, ele escreveu no Tratado Teológico-Político:
“Tudo o que desejamos honestamente se reduz a esses três objetos principais, a saber, [1] entender as coisas por suas causas primeiras, [2] dominar as paixões e adquirir o hábito da virtude, e enfim, [3] viver em segurança e com um corpo são” (TTP, cap. III, £5, p. 94)
Apesar deste desejo de entendimento das coisas, ele mostra que é a ignorância desta cadeia de causas e a ilusão da consciência de nossas vontades que produz em nós a sensação de liberdade. Assim, nem em sonho conseguimos pensar nas causas que nos dispõem a ter essas vontades e esses apetites e não outros. Inclinamo-nos quase naturalmente para determinadas coisas. Liberdade de escolha? Não parece.
Mas uma coisa é certa, por vontade Spinoza compreende a faculdade pela qual a mente afirma ou nega o que é verdadeiro ou falso, mas não o desejo pelo qual a mente apetece ou rejeita as coisas. O certo que a partir do desejo vivemos uma flutuação neste caleidoscópio de sentimentos e emoções, pois a “alegria não pode ser sólida e sem um conflito interior”.
Spinoza raramente utiliza-se de metáforas em sua produção filosófica, mas, em um dado momento, nesta parte da Ética lança mão da metáfora do mar e suas ondas, buscando dar visibilidade a sua teoria dos afetos. Ela é brilhante. Na demonstração da Proposição 59, Parte III, ele escreveu:
“Os principais afetos e as principais flutuações de ânimo que derivam da composição dos três afetos primitivos, a saber, o desejo, a alegria e a tristeza. Pela que foi dito, fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro, ignorantes de nossa sorte e de nosso destino“.
Em uma palestra, sobre liberdade e servidão em Spinoza, o professor Claudio Ulpiano (grande filósofo e pesquisador de Spinoza e Deleuze, autor do livro Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento – sua Tese de Doutorado) expõe e explora esta metáfora para mostrar a dinâmica da servidão humana. Ulpiano, a partir basicamente desta ideia, transforma o mar de Spinoza na visão do próprio homem. Ele diz que as ondas do mar não são produzidas pelo mar, como causa ativa na produção das ondas, e afirma que as elas são criadas por forças externas, os choques de ventos contrários produzem as ondas no mar, o mar neste caso é agente passivo. E assegura que os afetos nós homens são como as ondas do mar. Como ser apaixonado apenas sofre a ação externa. Mas olhando com atenção o texto do Spinoza, o mar não é o homem, parece mais o contexto maior onde o homem esta inserido… E os acontecimentos são as ondas que afetam este homem e não ondas de flutuação de ânimos no próprio homem-mar do exemplo de Ulpiano. Na metáfora do Spinoza ondas lançam o homem de um lado para o outro. Oscilamos como uma garrafa em um maremoto, subindo e descendo. Lançados de um lado para o outro. Da alegria a tristeza. Como um maremoto, a força provocada pelas afecções dificilmente são controláveis, e quando tentamos a dor provocada é muito intensa. E percebemos nossa impotência. E esta movimentação produz a flutuação de ânimos que geram esta condição passiva e frágil do homem. Entretanto, esta condição só acontece enquanto o homem tem um conhecimento inadequado sobre a natureza e sobre si, e por isso ignora as causas reais da produção das ondas.
Estas afecções, também chamada pelo Spinoza de paixão da alma, é uma ideia confusa. Temos muita dificuldade de precisar este espectro de emoções, sentimentos e ou afetos alegre ou tristes que somos afetados na vida. Mas são eles que afirmam nossa força de existir, eles determinam nosso pensar, julgar e agir. Nossa avaliação sobre o mundo e nossas preferencias por esta ou aquela coisa, além disso, a avaliação de determinada situação ou pessoa se transforma com a presença deste ou daquele afeto.
Tudo que produz impotência é triste e tudo que gera potência é alegria. Assim, a humildade, a inveja, o ódio, o rancor, o desprezo, a aversão, o medo, o remorso, o pudor, a comiseração, a desestima, arrependimento, a ambição, a avareza, a luxúria entre outros derivados destas listas são exemplos de afecções tristes, todas diminuem nossa potência de agir e pensar. Do outro lado, temos a lista de afecções alegres, são elas: amor, admiração, a segurança, o contentamento, o favor, a estima, a gratidão, entre outros, que aumentam nossa potência de agir e pensar.
Quando o homem ou mulher consegue ver para além da superfície do mar, quando constrói em si um conhecimento adequado ele ou ela compreenderá os rumos e perceberá com clareza para onde as ondas estão levando sua vida. Assim, não estará lançado à própria sorte, numa total ignorância de seu destino. Na verdade, poderá até mesmo minimizar as forças destas ondas em si.
Para finalizar, o pensar a dinâmica ondulatória dos afetos, quero lembrar que a vida é feita de momentos de impactos, os instantes fundamentais da realidade… os encontros determinantes a partir dos quais definimos quem somos e para onde vamos… Mas não podemos imaginar que a vida é equânime… Não existe um equilíbrio entre alegrias e tristezas na vida. A probabilidade de se alegrar é sempre menor do que se entristecer, pois somos dominados pela ideia de perfeição e por isso temos muita dificuldade de nos alegrar com o real. O idealismo é o nosso maior problema, ele nos faz crer que é muito fácil amar e se alegrar com aquilo que ainda não existe… A casa, o emprego, o companheiro, a cidade, o clima, a comida e a vida ideal. Lamentamos, murmuramos e até amaldiçoamos o que temos ou somos… E só vamos conseguir a alegria plena quando conseguimos a reconciliação com o real. Amar o que somos. O amor ao destino do velho Nietzsche e a beatitude do Spinoza, isto é, é a afirmação da vida, é aliviar o jugo, tirar a carga do que vive, dançar, criar. Na reconciliação com o real, a aceitação e satisfação são fundamentais para aproveitarmos os instantes de impactos que são essenciais na vida. A vida é feita destes instantes. A alegria esta na satisfação e é coisa rara, por isso quando uma pessoa ou uma situação ou uma coisa (filme, livro, musica) nos alegra não podemos tratar como se fosse coisa banal ou comum… Devemos abraçar este instante com toda nossa força e amar plenamente esta pessoa ou esta coisa. A alegria aumenta a vontade de viver, ela é um bem precioso neste mundo que parece que foi montado para nos entristecer.
O que temos e devemos fazer é viver tudo o que há pra viver, e nos permitir viver, como disse o poeta Lulu Santos. Era isso que queria dizer da leitura da terceira parte da Ética do Spinoza.
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