top of page

SERVIDÃO MAQUÍNICA, SUJEIÇÃO SOCIAL E UTILIDADE

  • cleverfernandes196
  • 1 de nov. de 2021
  • 5 min de leitura

O século XX foi marcado por grandes transformações na sociedade e sem dúvida a internet e a telefonia móvel provocaram mudanças assustadoras e avassaladoras na vida social. Para o bem ou para o mal, o certo é que, para muitas pessoas, não parece possível viver sem estes “avanços tecnológicos”, pois entramos numa onda civilizatória marcada pela presença intensa e quase total das inovações tecnológicas. Mas, na atual conjuntura, podemos questionar: Será que somos usuários dessas novas tecnologias ou escravos dependentes delas? Para pensar tais questões utilizaremos dois conceitos de Deleuze e Guattari, Servidão maquínica e sujeição social . Eles afirmam o seguinte:


"Distinguimos como dois conceitos a servidão maquínica e a sujeição social. Há servidão quando os próprios homens são peças constituintes de uma máquina, que eles compõem entre si e com outras coisas (animais, ferramentas), sob o controle e a direção de uma unidade superior. Mas, há sujeição quando a unidade superior constitui o homem como um sujeito que se reporta a um objeto tornado exterior, seja esse objeto um animal, uma ferramenta ou mesmo uma máquina: o homem, então, não é mais componente da máquina, mas trabalhador, usuário..., ele é sujeitado à máquina, e não mais submetido pela máquina. Não que o segundo regime seja mais humano”.

A partir dessa citação tem-se uma explicação que busca dar conta dos dois conceitos - servidão maquínica e sujeição social - na longa história da humanidade, marcada pela criação de ferramentas, domesticação de animais para o uso e abuso da vida social, numa dinâmica que faz o ser humano oscilar entre uma coisa e outra. É importante esclarecer que, segundo Deleuze e Guattari, “com o desenvolvimento tecnológico, o Estado moderno substituiu a servidão maquínica por uma sujeição social cada vez mais forte”. É visível que essa construção conceitual visa a uma compreensão bem dilatada da realidade histórico-social onde é possível perceber que para os autores do Mil Platôs existe uma separação entre os dois conceitos, mas, ao mesmo tempo, podemos pensar numa ligação entre eles. A servidão e sujeição de braços dados, possibilidade que os próprios autores indicam em uma nota: “um dos temas de base da ficção científica é mostrar como a servidão maquínica se combina com os processos de sujeição, mas os transborda e se distingue deles, operando um salto qualitativo, por exemplo, Bradbury: a televisão não sendo mais um instrumento que comporia o centro da casa, mas constituindo suas paredes”. Essa breve nota lança uma questão importante, por isso, vamos dilatá-la: A primeira coisa importante é a constatação dessa passagem da televisão do centro da sala de estar para ocupar uma parede toda de uma casa, o que nos faz pensar a importância social desta máquina. E mais, temos nela um tipo de distinção social, uma vez que nem todos teriam condições de ter uma televisão com essa dimensão. Ray Bradbury é o autor do livro Fahrenheit 451, uma linda distopia publicada no início da década de 1950, que antevê a força de uma invenção daquele período. Lembre que a televisão foi criada no final da década de 1920, mas seu boom só aconteceu após a segunda grande guerra. Mesmo sendo uma invenção recente, Bradbury, na construção de sua ficção, percebe o potencial deste aparelho, pois para ele essa máquina dominaria a vida social. Quando ainda só existiam pequenos aparelhos de televisão, ele já imaginava televisões com telas que tomavam as paredes das casas. Aparelhos interativos que os telespectadores conversariam com os apresentadores em tempo real. Coisas que hoje são até banais, mas que no início da segunda metade do século XX era fruto apenas da imaginação. Além dessas antecipações, duas coisas são interessantes no livro de Bradbury: 1. a dependência e controle da televisão sobre a vida e 2. a oposição entre televisão e livros. Com a televisão temos em cena um novo tipo de servidão maquínica ou sujeição social. Podemos dizer, que essa obra é a denúncia da criminalização do livro e da leitura como prática social. 451 graus Fahrenheit é exatamente a temperatura de combustão do papel. E o irônico nessa distopia é que os bombeiros são os profissionais responsáveis pela incineração dos livros. Queimam os livros, para eliminar o acusador de nossa ignorância, pois, como escreveu Ray Bradbury, “os livros servem para lembrar quanto somos estúpidos e tolos”. Mas essa prática não está apenas na literatura, a cultura cristã também tem tradição incendiária, só para ilustrar no livro dos Atos dos apóstolos eles se alegram de queimarem publicamente livros de feitiçaria (Atos 19,19). Parece que Heine tinha razão quando sentenciou: “onde se lançam livros às chamas, acaba-se por queimar também as pessoas”. Se o cristianismo no início festejava a queima de livros de bruxaria, tempos depois resolveram incinerar as bruxas e bruxos. Mas, retomando nossa questão, na distopia de Bradbury, enquanto as televisões são aparelhos do Estado para fomentar a servidão e sujeição, os livros são máquinas de guerra, que não produzem sujeição e nem servidão, pelo contrário, lutam pela emancipação das pessoas. Bradbury é um sintomatologista, em sua obra, faz um diagnóstico de nossa civilização ocidental, e a partir de um conjunto de sintomas indica uma tendência cultural, qual seja, numa sociedade que cultua a ignorância e nega a importância do conhecimento científico é potencialmente possível criminalizar os livros e a prática de leitura. Qual a importância do ato de ler? Livros para quê? Com o advento da internet e suas redes sociais as pessoas estão preferindo imagens e vídeos em detrimento de livros. Os telefones móveis, na verdade computadores de mão, são os objetos mais importantes. Recebem toda atenção, são quase objetos de culto, dada a devoção que lhes são oferecidas diariamente. Verdadeiros ídolos pessoais e intransferíveis, até parecem um novo órgão vital. Nessa relação íntima entre pessoas e máquinas, parece que existe uma servidão maquínica e sujeição social. Algumas pessoas não conseguem imaginar a vida sem eles. Tudo indica que não é só mais um objeto de uso, pois a presença dessas ferramentas na vida social não parece ficar apenas na categoria de objetos úteis. Estão enquadrados nos objetos vitais. Mas, ainda bem que onde existe poder e dominação sempre há luta e resistência, já nos ensinou Michel Foucault. Na obra de Bradbury também temos essa dinâmica, pois diante das ameaças de extermínio total dos livros, no final da narrativa, como sinal de esperança, temos a ação de um grupo de resistência vivendo à margem da vida social como bandidos e marginais (cujo crime é ser leitores e portarem livros em mãos), numa louca tentativa de decorar os livros para assim preservar um pouco da memória escrita, uma contra-conduta libertária que não se deixou contaminar pela servidão maquínica e sujeição social. Para finalizar, tem uma passagem na obra no mínimo irônica, mas que sinaliza algo importante. O bombeiro descobriu na casa do seu chefe, o queimador-chefe de livros, uma biblioteca oculta. Diante daquela estante lotada de livros, surpreso, ele exclama: “Não pode ter livros em sua casa! O chefe com um sorrisinho seco e maroto, replica: “O crime não é ter livros, Montag, o crime é lê-los! Sim, é isso mesmo. Eu tenho, mas não os leio!”. Eis a lição do chefe dos bombeiros, o perigo do livro não está na simples posse, ele só é uma arma carregada na casa de alguém quando é lido. Os livros como objetos de decoração são inofensivos.


Agradecimentos especiais ao artista João Colagem pela ilustração deste texto, sigam ele nas redes sociais https://www.instagram.com/joao_colagem/

 
 
 

1 Comment


Antonio Silva
Jan 23, 2022

Que incrível! Leitura leve e fundamental. Quando já quase sentia vencido pela extensão do corpo denominada de celular você veio parafraseando Foucault em poder e dominação; luta e resistência.

Grande Abraço fraterno.

Like

@2020 gerenciado por Jéssika Miranda 

bottom of page