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OS TEMPOS NA OBRA DE ARTE

Por Nertan Dias Silva Maia*


Nas produções artísticas o tempo pode ser registrado por diversos meios, em variados suportes e com inúmeras conceituações e intencionalidades, que, por sua vez, vão dizer sobre as dimensões temporais das obras, ou seja, o modo como os artistas dialogam com a temporalidade no seu discurso criativo. Neste texto, mostramos, mediante uma breve análise, como os artistas tratam o tempo em suas produções, tanto como continuidade, quando tomado como recorte de um instante no fluxo da experiência estética, quanto como fragmento, quando relacionado ao caráter transitório do tempo. Portanto, destacar estes modos como os artistas relacionam e dão sentido ao tempo em suas produções constitui nosso objetivo central.


Para tanto, analisaremos as seguintes obras: Onda, fotografia de Gustave Le Gray, tirada em 1856; as Poltronas Up-series, produzidas por Gaetano Pesce, em 1964; Píer em espiral, Land Art de Robert Smithson, construída em 1970; A Estação de Saint-Lazare, pintura de Claude Monet de 1877; Entr'acte, curta-metragem dadaísta de René Clair, filmado em 1924; e Trenzinho, instalação de Mira Schendel, realizada em 1965.

Nas três primeiras obras os artistas propõem formas de apreensão do tempo sob a perspectiva de um momento contínuo, sintetizado pela apropriação de um tempo preciso, experienciado por intervalos sólidos no espaço.

Já nas três últimas obras relacionadas, observa-se outra perspectiva de registro temporal que diverge da empregada nas obras anteriores, pois agora o tempo é fragilizado mediante a desestabilização da noção de perenidade, seja pela difusão cromática empregada por Claude Monet em sua pintura, seja pela confluência de movimentos caóticos do curta-metragem de René Clair, ou ainda pela efemeridade que constitui a própria estrutura física da instalação de Mira Schendel.

Certamente, analisar as diferentes relações que estes trabalhos têm com o tempo e os sentidos que os mesmos lhe atribuem, requer uma discussão mais aprofundada acerca dessa temática, algo que, evidentemente, não é possível realizar neste singelo texto. Entretanto, de um modo sumário, seguiremos com uma análise panorâmica das obras em tela, buscando ressaltar pontos específicos que caracterizam a relação mais imediata que elas mantêm com o tempo dos pontos de vista da continuidade e da transitoriedade, ou seja, das dimensões da solidez e da efemeridade do tempo no espaço da obra de arte.

Como já afirmamos, as obras de Le Gray, Perce e Smithson foram concebidas a partir da noção de tempo associada a um movimento contínuo; por sua vez, nas obras de Monet, Clair e Scheldel aparece a noção de tempo relacionada à leveza e à instantaneidade. De um modo geral, as obras de arte carregam em si um tempo peculiar que é estabelecido a partir do instante de sua produção e que se estende, permanentemente, ao expectador que ressignifica a relação tempo-espaço em cada momento de sua fruição estética. Pensar arte a partir de suas dimensões temporais permite tanto ao criador quanto ao fruidor abordá-la sob dois prismas: do ponto de vista imediato (instantâneo) e do ponto de vista mediato (dilatado). Estes modos de produção e fruição temporal nas obras de arte ou bem sintetizam ou bem dissociam momentos instantâneos e perenes, levando o espectador a refletir sobre uma diversidade de sentidos e sentimentos acerca da qualidade da permanência do tempo no espaço.


Na fotografia de Le Grey, percebe-se uma intencionalidade lúcida de se captar o instantâneo do momento, cuja precisão é vista na imagem das ondas em um movimento congelado, mas que induz o expectador a fabricar uma extensão psicológica da paisagem, dando-lhe a sensação do movimento e mesmo do som das ondas quebrando.


Sob outra percepção, agora no âmbito da sensação imediata e física, as poltronas de Perce associam movimento e forma. Esse movimento interno do objeto desdobra-se no espaço na medida de um fragmento temporal, formatando um conjunto complexo de valores físicos e psíquicos que permitem a fruição da obra pelos sentidos e pelas sensações.


Smithson, com seu Píer em espiral, faz uma síntese das impressões das duas obras comentadas acima. Sua obra exige do espectador uma participação física mais duradoura na fruição, pois do modo como fora constituída, o indivíduo precisa contemplá-la a partir de seu interior para que a experiência estética se efetive. Isso o coloca dentro de um tempo específico e particularizado, visto que é o espectador-fruidor quem realiza objetiva e subjetivamente o percurso no interior da obra e dentro de uma fração de tempo sob pontos de vista que sua consciência capta a cada deslocamento. Nesta obra o tempo confunde-se com o movimento, pois, ao remeter o espectador-fruidor a seu interior, onde cada ponto de vista representa um fragmento de espaço-tempo, cada deslocamento feito pelo espectador produz um espaço instantâneo, que vai lhe revelando novas visões da realidade na medida em que ele explora a obra em todas as suas dimensões e sob uma infinidade de sensações que dela decorrem.


A Estação de Saint-Lazare de Monet realiza no observador um exercício de fruição contrário ao que é proposto na obra de Smithson. O pintor francês utiliza-se não do movimento físico, mas do movimento psicológico realizado pelo olhar, cuja visão embaçada pela fumaça dá uma impressão de lentidão à dinâmica da obra. O tempo se cristaliza e se fragmenta no recinto da estação motivado pela difusão cromática e pelo efeito pesado e lendo que consegue transferir à perspectiva atmosférica. As formas instáveis obtidas por pinceladas rápidas e leves, só são percebidas quando tocadas por uma tênue luminosidade, que Monet indica através da dissolução das cores. Esse efeito pictórico, típico do impressionismo, imobiliza a noção de tempo imprimindo à obra uma estranha sensação de eternidade momentânea.

Um bom exemplo de descontinuidade temporal encontra-se no curta-metragem Entr’acte de René Clair. A sequência aparentemente desconexa das imagens e o modo como as cenas foram estruturadas, como colagens, configuram à obra um tempo entrecortado por lapsos bruscos de movimento e espaço. A sobreposição de imagens, bem como o plano incomum em que foi colocada a câmera, representam uma forma de reorganizar o tempo racional a partir de uma nova perspectiva, que subverte a noção cronológica do tempo com a qual estamos habituados a lidar. A cena completa é um perfeito paradoxo conseguido pela dialética entre as ideias de leveza e peso, temporalidade e atemporalidade, lugar e não-lugar.


Por fim, o Trenzinho, de Schendel, mostra de imediato a impressão de algo transitório, passageiro, a começar pela materialidade delicada da obra dada pelos simples recortes de papel presos a um fino varal. É notória uma oposição consciente, afirmada pela artista, a tudo que é eterno e seguro; também é possível pensar na metáfora contida na própria composição da obra: uma estrutura frágil não só como a própria vida que passa com certa brevidade, mas também como todas as coisas que a representam. O efêmero é a principal ligação com o aspecto temporal e a sensação que se experimenta ao contemplar esta obra é a de nos certificarmos de que não há certezas de uma continuidade para o singelo “trenzinho”, ao qual podemos referir aos limites de nossa precária existência.

Em suma, entendemos que as obras de arte que escolhemos para nossa análise, nos possibilitaram fazer uma reavaliação do sentido da existência sob a perspectiva do tempo como principal elemento de (des)ordenação da vida, bem como pensar o homem como o sujeito da percepção, inventor e decodificador dos espaços e dos tempos sociais e psicológicos. O tempo – ou os tempos – na obra de arte, discutido a partir das modalidades antagônicas do eterno e do transitório, não só dialoga com a consciência espaço-temporal dos indivíduos, como também promove a relação de suas vivências cotidianas com a finitude da própria existência mediante a experiência estética.

O contraditório não é visto aqui como algo que interdita ou dificulta a compreensão ou a relação das obras com seus expectadores. Pelo contrário, trata-se de um elemento fundamental para mobilizar o par reflexão-fruição na experiência estética, uma vez que desvela o caráter transitório do homem enquanto ser finito, mas que, ao mesmo tempo, se eterniza na medida em que produz coisas, lugares e ideias. Esse dado está frequentemente evidenciado nas obras em questão, uma vez que sintetiza sentimentos contrários de afirmação e negação acerca de uma mesma percepção circunstancial de existência, promovendo, assim, uma aproximação entre opostos que causa um estranhamento familiar acerca da noção de tempo em todos aqueles que apreciam com lúdica seriedade uma autêntica obra de arte.


Iconografia:

A Estação de Saint-Lazare. Claude Monet, 1877. Óleo s/ tela, 60x100cm. Domínio público.


Entr'acte. René Clair, 1924. Curta-metragem. França, 1924, p&b, 22 min. Domínio público.


Onda. Gustave Le Gray, 1856. Fotografia. Domínio público.


Píer em espiral (Spiral Jetty). Robert Smithson, 1970. Construção escultórica em terra, pedra e água. Licenciado por AUTVIS, Brasil, 2007.


Poltronas Up-series. Gaetano Pesce, 1964. Mobiliário em espuma de poliuretano revestida. Gentilmente cedida ao Senac – Departamento Nacional por Mr. Pesce.


Trenzinho. Mira Scheldel, 1965. Assemblage com papel de arroz e fio nylon, 455x23cm. Autorização gentilmente concedida ao Senac – Departamento Nacional pela Sra. Ada Clara Dub Scheldel Bento, 2007.


As imagens deste texto foram retiradas da seguinte fonte:

SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL. Curso de Artes visuais: cultura e criação. Rio de Janeiro: SENAC, 2007. CD-Rom (Material didático). ISBN 85-7458-194-1.




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Sobre o autor: * Adjunto da Universidade Federal do Maranhão. Doutor em Filosofia (UERJ); Mestre em Educação (UECE), músico, pedagogo e artista visual. E-mail: nertandias@gmail.com. Redes sociais: @nertansilvamaia


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