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  • cleverfernandes196

SERVIDÃO HUMANA E A FORÇA DOS AFETOS EM SPINOZA

Normalmente a palavra servidão nos faz pensar, quase sempre, nas clássicas e históricas experiências de escravidão da antiguidade greco-romana, ou da moderna escravidão negro-africana, ambas injustas e desumanizadoras; e, além destas, podemos também lembrar a contemporânea servidão “voluntária” da sociedade do consumo e do espetáculo, que transforma pessoas em “escravos” do consumo e da vontade de sair do anonimato, na corrida insana pela fama. Entretanto, quero pensar outro tipo de servidão humana, aquela que controla e escraviza o humano sem correntes ou sem os apelos do marketing: a servidão humana produzida pelos afetos. Para pensa-la acompanharemos o filósofo do século XVII chamado Baruch Spinoza (1632-1677).

Spinoza foi uma anomalia selvagem (NEGRI,1993) entre os filósofos do Dezessete. Ele, na aurora da filosofia moderna, produziu um livro intitulado em latim Ethica ordine geometrico demonstrata [Ética demonstrada em ordem geométrica] que, sem dúvida, é uma das mais significativas e mais belas produções da história da filosofia. “Ele faz [neste livro] uma espécie de retrato geométrico de nossa vida, que, parece-me… muito convincente”, escreveu Deleuze no seu Curso sobre Spinoza (2012, p.30). Este retrato de nossa vida pintado por ele tem cinco partes: E.I. Deus, E.II. A natureza e a origem da mente, E.III. A origem e a natureza dos afetos, E.IV. A servidão humana ou a força dos afetos, e E.V. A potência do intelecto ou a liberdade humana. Na primeira parte Spinoza elabora sua ontologia, na segunda produz sua epistemologia, e nas ultimas três partes elabora sua ética demonstrada em ordem geométrica. Assim, fica claro, pela exposição das partes, que, nossa análise terá como base principal a quarta parte da Ética. Porém, antes de entrarmos na questão específica, temos que fazer uma breve excursão em sua prática epistemológica, pois, penso que assim, fica mais fácil compreender a servidão humana na visão de Spinoza, cotejando sua teoria do conhecimento.

Para o pensador de Amsterdã, as nossas ideias são adequadas ou inadequadas, e na II Parte da Ética, em sua quarta demonstração, ele explicou que “por ideia adequada compreendo uma ideia que, enquanto considerada em si mesma, sem relação com o objeto, tem todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira”. Ele salienta que disse “intrínsecas para excluir a propriedade extrínseca, a saber, a que se refere à concordância da ideia com o seu ideado” (E.II, D4). Então, para Spinoza, ideias adequadas são verdadeiras, e as inadequadas são falsas, mutiladas e confusas.

A partir desta distinção, no segundo escólio da proposição 40 da II Parte de sua Ética, Spinoza apresenta os seus três gêneros do conhecimento humano, são eles:

1. Opinião ou Imaginação;

2. Noções comuns ou Razão;

3. Ciência intuitiva ou Essência formal/coisa.

Para ele, “o conhecimento de primeiro gênero é a única causa de falsidade, enquanto o conhecimento de segundo gênero e o de terceiro é necessariamente verdadeiro” (E.II, P41). Assim, podemos dizer que, o conhecimento de primeiro gênero são representações mentais de efeitos sem as suas causas, ou das causas imaginadas, e por isso gera falsas noções da realidade. A opinião e a imaginação humana são meras produções de afecções corporais, são marcas, e, por isso, as pessoas não compreendem as causas destas afecções ou destas marcas, criam opiniões mutiladas da realidade, produzindo assim o que Spinoza chamou de ideias inadequadas.

Depois desta sintética apresentação da teoria do conhecimento do Spinoza, vamos ao objetivo deste artigo, qual seja, compreender o que é para ele a servidão humana. No prefácio da IV Parte, Spinoza escreveu: “chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeito que é, muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior” (p.263). Na sequência, na proposição 6, da IV Parte, da Ética, o pensador escreveu a seguinte ideia: “a força de uma paixão ou de um afeto pode superar as outras ações do homem, ou sua potência, de tal maneira que este afeto permanece, obstinadamente, nele fixado”. Em outras palavras, a força humana não é suficiente para frear ou controlar os afetos e as paixões, o homem é impotente e isso o leva facilmente à servidão, pois, sua potência de agir ou reagir esta diminuída frente às paixões, neste momento ele deixa de ser um ser de ação, tornando-se um ser apaixonado, e o ser apaixonado é servo de sua paixão. Além disso, não podemos esquecer, a diminuição da potência de agir no ser humano liga-se diretamente as suas ideias inadequadas, por não conseguir perceber a rede de causalidade provocadora daquela paixão tem uma visão deformada da realidade, assim, o indivíduo não consegue ser a causa eficiente de sua ação e torna-se passivo. Padece de sua ignorância. Entretanto, nesta condição, mesmo tendo consciência e, até mesmo, buscando lutar para se desvencilhar do jugo dessa paixão dificilmente consegue vencer. Como Spinoza disse: os afetos e as paixões são tão fortes que embora o homem enxergue o que é melhor para si, acaba realizando o pior. Essa incapacidade humana de se libertar das paixões é a própria configuração da servidão humana.

Mas, podemos nos perguntar, todas as paixões e os afetos podem nos escravizar? Como se dá esta dinâmica dos afetos? Para responder esta questão podemos tomar uma metáfora construída por Spinoza. Ele utiliza-se pouco de metáforas em sua exposição filosófica, mas, em um dado momento, na III Parte da Ética elaborou uma brilhante metáfora do mar e suas ondas, buscando com isso dar visibilidade a sua teoria dos afetos. Ele escreveu: “Os principais afetos e as principais flutuações de ânimo derivam da composição dos três afetos primitivos, a saber, o desejo, a alegria e a tristeza. Pela que foi dito, fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro, ignorantes de nossa sorte e de nosso destino” (E.III, P59).

Na metáfora spinozana, as ondas nos lançam de um lado para o outro. Oscilamos como uma garrafa em um maremoto, subindo e descendo, lançados de um lado para o outro: da alegria à tristeza. E, como um maremoto, a força provocada pelas afecções dificilmente são controláveis, quando tentamos, a dor provocada é intensificada e com isso, percebemos nossa impotência. Esta movimentação produz a flutuação de ânimos que geram esta condição passiva e frágil do homem, entretanto, esta condição só acontece enquanto o homem tem um conhecimento inadequado sobre a natureza e sobre si, e por isso ignora as causas reais da produção das ondas.

Estas afecções, também chamada pelo Spinoza de paixão da alma, é uma ideia confusa. Temos muita dificuldade de precisar nossas emoções, sentimentos e ou afetos que vivemos na vida. Mas, são os afetos alegres que afirmam nossa força de existir, eles determinam e ampliam nossa capacidade de pensar, julgar e agir, porém, o contrário também é verdadeiro, os afetos tristes reduzem nossa força de agir, e, eles diminuem nossa capacidade de pensar, julgar e agir. Assim, cada um a seu modo, afeta nossa avaliação sobre o mundo e influenciam nossas preferencias por esta ou aquela coisa. Em linhas gerais, para Spinoza, tudo que produz impotência é triste e tudo que gera potência é alegria. Assim, a humildade, a inveja, o ódio, o rancor, o desprezo, a aversão, o medo, o remorso, o pudor, a comiseração, a desestima, arrependimento, a ambição, a avareza, a luxúria entre outros derivados destas listas são exemplos de afecções tristes, para Spinoza, e todas elas diminuem a nossa potência de agir e pensar. Do outro lado, temos a lista de afecções alegres, são elas: amor, admiração, a segurança, o contentamento, o favor, a estima, a gratidão, entre outras, essas ao contrário daquelas aumentam nossa potência.

Desta forma, retomando a metáfora do mar, quando conseguimos ver para além da superfície do mar, quando construímos em nós conhecimentos adequados, podemos compreender os rumos e perceber com clareza para onde as ondas estão levando nossas vidas. Com isso, não estaremos lançado à nossa própria sorte, numa total ignorância de nosso destino. Na verdade, podemos até mesmo minimizar as forças destas ondas em nós, mas, veja bem, isso não significa que estamos no controle absoluto da situação, apenas podemos encontrar um ritmo favorável no balanço do mar, encontrando nossa própria ritmicidade existencial. Porém, na dinâmica ondulatória dos afetos, de acordo com Spinoza, as coisas não são tão simples, pois, “o afeto de que padecemos não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto mais forte que o primeiro e contrário a ele, isto é, senão pela ideia de uma afeção do corpo contrária àquela da qual padecemos e mais forte do que ela” (E.IV, P7, Corolário, p.277), então essa é a única saída desta situação de servidão humana, a luta entre os afetos, é nesta luta de forças entre os afetos alegres e tristes que acontece a vida. Nosso agir se dá na dinâmica ou flutuação destes afetos, nos movimentos das ondas do maremoto. Esta dinâmica dos afetos esta ligada a sua epistemologia e, por isso, Spinoza escreveu, “a nossa mente, algumas vezes, age; outras, na verdade, padece. Mais especificamente, à medida que têm ideias adequadas, ela age; à medida que tem ideias inadequadas, ela necessariamente padece” (E.III, P1), tornando-se assim escravo das paixões. Pois, o homem só se libertará das paixões quando tem conhecimento adequado da relação de causalidade dos afetos, quando percebe a importância da alegria em sua vida. Afinal, não existe ação triste, para Spinoza toda ação é alegre, visto que, a tristeza produz um fluxo contrário à ação. Ela nos imobiliza e sempre nos leva a angústia, pois, quando estamos tristes diminuímos nossa potência de agir. A tristeza nos enfraquece e nos tornam cada vez mais passivos, deixando-nos consequentemente dependentes das forças que vem de fora, pois, o agente entristecedor é sempre o mundo externo. Essa passividade fruto da tristeza só terá fim quando às forças que vem de dentro, a alegria, for mais forte e intensa que as forças que vem de fora. Spinoza nos ensina, que o problema é que a maioria das pessoas estão, quase sempre, na contabilidade das forças, multiplicando as tristezas e subtraindo as alegrias da vida. E assim, na subtração entre entradas e saídas, no balanço final, parece que estão sempre em déficitde alegria. Como se a vida não tivesse alegria, e isso não é verdade.

E, por isso, podemos lembrar a primeira estrofe do Samba da Bênção, do poeta Vinicius de Moraes: “É melhor ser alegre do que ser triste; A alegria é a melhor coisa que existe; É assim como a luz no coração”. Por que é importante lembrar desta canção? Porque, para sobrepujar a tristeza e fortalecer a própria força interna de existir temos que acentuar as alegrias em nossas vidas, e, desta forma, é possível passar da passividade ou servidão à ação, aumentando com isso a alegria e a nossa potência de agir. Precisamos buscar todos os meios para escapar da servidão que sufoca nossa liberdade, e isso só é possível quando aumentamos nossa potência de agir, assim as paixões tristes não vão nos lançar na servidão.

Mas, os afetos e as paixões que nos lançam num tipo de servidão, devido às ideias inadequadas, não são abstrações mentais. Eles são personagens reais que nos embriagam e tem múltiplas formas. Para libertar-nos da força destes afetos e paixões temos que ter uma afecção contrária mais forte, como nos ensinou Spinoza em sua Ética. Entretanto, isso não é coisa fácil. Por exemplo, vamos pensar uma coisa simples, libertar-se do consumismo é também uma luta contra a servidão, e, se, por um lado, a causa mais imediata desta escravidão está na massificação das propagandas que estimula o desejo consumista, por outro, temos também a força dos afetos, somos tomados pela paixão consumista que não dá tempo para pensá-lo e assim mensurar as causas reais daquele consumo. A sensação de prazer em comprar reduz o homem a uma única dimensão e, ao mesmo tempo, essa condição ofusca a razão. Spinoza no Tratado da Reforma da Inteligência escreveu que existem três coisas que distraem a mente: o prazer, a fama e a riqueza. Quando as pessoas se colocam na realização de uma destas coisas, elas não conseguem pensar em outra coisa, ou se conseguem é com muita dificuldade. Ele escreveu o seguinte: “as coisas que mais ocorrem na vida, e são tidas pelos homens como o supremo bem, ligam-se, pelo que pode depreender de suas obras, nestas três: riqueza, honra e concupiscência [libidinem]. Cada uma delas distrai a mente, que não pode pensar em outro bem. No atinente à libido, a alma é suspensa como se nela pudesse descansar e está impedida ao máximo de cogitar outro bem” (2014, p.328; 2004, p.6). O pensar é suspendido, no prazer ele não funciona. A busca desenfreada pelo prazer sexual escraviza ainda mais, pois o prazer descansa a mente provocando a impressão de que ela chegou ao seu destino, não precisando buscar mais nada. Como se tivesse atingido o sentido último da vida, principalmente, no momento do gozo, do orgasmo, quando a sensação é como se o mundo não existisse. Porém, isso não é verdade, é apenas as ideias inadequadas controlando a vida. Para libertar-se da servidão do afeto do consumo, ou da libido, é necessário descobrir algo mais intenso, durável e contrário aos prazeres escravizantes e efêmeros.

Entretanto, a experiência tem nos ensinado que a libertação da mente da força dos afetos não é uma coisa fácil ou simples. Na vida ordinária estamos quase sempre submetidos à servidão, porém, podemos concluir como Spinoza no final de sua Ética: “Se o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso [a libertação da mente] parece muito árduo, ele pode, entretanto, ser encontrado. E deve ser certamente árduo aquilo que tão raramente se encontra […] Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro” (E.IV. P42, Escólio, p.411).

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza:(Vincennes 1978-1981). 2.ed. Fortaleza: Ed.UECE, 2012.

NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza. (Tradução Raquel Ramalhete). São Paulo: Ed. 34, 1993.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. 3.ed. bilíngue. (Tradução Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

___. Tratado da Correção do Intelecto. (Tradução J. Guinsburg e Newton Cunha). São Paulo: Perspectiva, 2014.p.323-365. (Spinoza Obra Completa I – Coleção Textos 29)

___. Tratado da Reforma da Inteligência. (Tradução Lívio Teixeira). São Paulo: Martinz Fontes, 2004.

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