top of page
  • cleverfernandes196

RESSONÂNCIAS NIETZSCHIANAS NO FILME RETRATO DE DORYAN GRAY [PARTE III – FINAL]

No dia seguinte, em uma exposição de arte, Doryan esta arrasado com o rompimento, outra vez o seu mentor lança novas ideias sobre a vida e o deslumbrado Gray abraça de forma incondicional. Ele coloca em ação as ideias de Henri, pois o Lorde revela que o mundo é dele por uma temporada: a da beleza e da juventude. Por isso, ele não deveria temer a vida, deveria viver intensamente. Então, após a lição Doryan resolveu ir com varias mulheres jovens para dar continuidade a festa e iniciar mais uma orgia em sua casa. Porém, quando chegou, o irmão de Sibyl estava lhe esperando com a trágica noticia. Sibyl em um momento de desemperro suicidou-se. Ela estava grávida. Jim Vane acusou Doryan como responsável pela morte de sua irmã. Os dois brigam e Jim é levado preso por agressão. Doryan fica transtornado com a noticia. Neste momento Henri apresenta outras ideias, que tem ressonância com as ideias de Nietzsche. Vejamos o dialogo:

— Não foi culpa sua, Doryan.

— Kelson [meu avô] disse que eu era a morte.

— Bom, ele estava errado.

— Salome. Harry?

— Você não fala coerentemente.

[A infância atormentada volta em sua mente como fantasma, a visão de seu avô o espancando vem a luz. E o dialogo continua.]

— Ele é parte de mim, Harry. Transformo todo amor em morte.

— Doryan. Dorian!

— Em morte. Morte.

— Kelso era um fracassado amargurado e está morto. O passado é passado. A experiência nos deixa mais forte, Doryan. E precisa ver este episódio pelo que realmente é. Uma experiência extraordinária.

— Não consigo ser tão insensível.

— Isso não é ser insensível. É encontrar uma perspectiva. Muitos não têm força suficiente para superar os sofrimentos. Dominar as emoções… saboreá-las… para isso é preciso ser um homem de valor.

Neste ponto tem-se a ressonância mais forte, pois reaparece a questão das experienciais como algo valoroso e extraordinário e, temos mais duas coisas importantes, a questão do passado e da perspectiva dos fatos. No Assim Falou Zaratustra, Nietzsche ensina que para os sábios e poetas todas as coisas são preciosas, todas as vivências são proveitosas, todos os dias são sagrados e todos os seres são divinos. Assim, quando lorde Henri diz que todas as experiências são valorosas e extraordinárias podemos sentir o doce aroma da filosofia nietzschiana. Na sequencia das ideias lorde se aproxima ainda mais do pensamento do professor da Basiléia, quando reforça a ideia que passado é passado, e que o charme do passado é ficar no passado, temos outra ressonância nietzschiana, pois temos em Nietzsche uma invocação semelhante. O pensador diz: “Fora com todo o passado!”, entretanto, ele não esta advogando o fim do passado, mas existe para ele um grau necessário de esquecimento para vida feliz. É essencial estabelecer, nos ensina Nietzsche, “o limite, no interior do qual o que passou precisa ser esquecido, caso ele não deva se tornar o coveiro do presente” (CONSIDERAÇÃO, 2003, p.10). Esta força plástica do esquecimento transforma e incorpora o que é estranho e passado, cura ferida, restabelece o perdido, reconstitui por si mesma as formas partidas (CONSIDERAÇÃO,2003, p.10). Como o desejo de mudança não é retroativo, não é possível querer o que já passou. E além disso inexorável os acontecimentos são irreversíveis, por isso, é fundamental para continuarmos a vida, sem não nos tornarmos coveiros de nosso presente, esquecê-los principalmente os trágicos. Então quando Henri orienta o jovem Gray que deixe o passado no passado, e veja as coisas na perspectiva que elas merecem. No fundo sua orientação é para curar com a força plástica do esquecimento, mas é necessário ser um homem forte para conseguir tal coisa, pois nos afirma Nietzsche que

Há homens que possuem tão pouca força que, em uma única vivência, em uma única dor, frequentemente mesmo em uma única e sutil injustiça, se esvaem incuravelmente em sangue como que através de um pequeno corte; por outro lado, há homens nos quais os mais terríveis e horripilantes acontecimentos da vida e mesmo os atos de sua própria maldade afetam tão pouco que os levam em meio deles ou logo em seguida a um suportável bem-estar e a uma espécie de consciência tranquila. (2003, p.11).

Em outras palavras, a arte do esquecimento nietzschiano é um remédio para a vida presente. Esquecer para não deixar que o fardo do passado pese sobre o presente, pois a recordação deve ter sobre nós a força necessária para nos dar unidade na vida. Lembrar quem somos e onde estamos é fundamental, pois não é só o esquecimento que importa, é necessário “que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-histórico” (2003, p.11). Como salienta Roberto Gomes: “É tão grave esquecer-se no passado quanto esquecer-se dele” (1980, p.20).

As orientações eram para o jovem Gray suportar a tempestade vivida naquele momento da morte trágica de sua amada, pois as inquietações, os tormentos, as amarguras e as fadigas da existência tem seu fim quando conseguimos ter força plástica suficiente para ver e sentir as coisas como elas são. É na verdade a presença marcante do amor fati nietzschiano, esta expressão é usada por Nietzsche para indicar a atitude do além-homem que, com espírito dionisíaco, aceita a vida entusiasticamente em todos os seus aspectos, até nos cruéis. O além-homem não apenas suportar aquilo que é necessário, mas o aceita e o ama (REALE; ANTISERI, 2005, p.13). O amor fati é aceitação da vida sem mascaras, sem ilusões, sem dissimulações, isto é, sem “qualquer que seja a espécie de embriaguez, espiritual, moral, religiosa ou artística” (AURORA, p.59).

Depois do dialogo, Henri vai embora e deixa o jovem consolado, curado de seu trauma. A lição foi aprendida. No dia seguinte, Basil chega apresado e preocupado com o amigo. Ele foi prestar sua solidariedade, diante da tragédia sofrida pelo amigo, a perda brutal da mulher amada. Porém, a reação de Doryan surpreende o artista. Ele esta se arrumando para uma festa e pergunta se Basil não vai. Os dois conversam. Basil percebe a ausência do retrato que não esta mais no local que foi solenemente colocado. E, diante da desculpa do amigo, diz: “Poderia perdoar a vaidade da aflição se parecesse aflito“. Ao que Doryan responde: “Eu estava afetado, mas passado é passado. Toda experiência é valorosa“. Ao ouvir de Doryan tais ideias, Basil tenta ser o seu alter-ego. Oferece novamente o conselho do inicio do filme: não ouça tudo o que lorde Henri lhe diz,ao afirmar: “Não deveria acreditar em tudo o que Harry diz. Ele não acredita“.

Entretanto, o jovem Doryan fascinado segue caminho oposto, ele intensifica sua conduta seguindo as orientações do nietzschiano Henri. A força persuasiva do lorde é tamanha que Doryan resolve colocar em ação a ideia que todas as experiências são valorosas. Esta intensificação da vida se mostra nas festas e nas múltiplas experiências vividas pelo personagem. Pena que o filme quase limita as experiências em orgias sexuais: relações hetero e homossexual, sadomasoquista, mas também canibalismo entre outras possibilidades. O ápice acontece quando Doryan revela para Basil o seu segredo: o retrato envelhecido, deformado, transfigurado. Assustado com aquela cena insólita, ele ameaça destruí-lo. Ao que Doryan não vacila: mata o pintor. O assassinato de Basil é vivido como mais uma experiência.

Como o pintor estava de viagem marcada para Paris, onde realizaria uma exposição de suas obras. Ficou fácil esconder o crime, pois ninguém sentiria falta do pintor. Gray o esquartejou, colocou em uma grande mala e jogou pedaço por pedaço em um rio. Tempos depois, a polícia encontrou o corpo esquartejado mas não conseguiram descobrir o autor do assassinato. Para evitar qualquer suspeita, Doryan participa do sepultamento. E depois resolveu viajar, convidou o seu mentor que recusa pois sua filha está quase nascendo. E por anos Doryan fica enviando cartas para Henri relatando as suas experiências.

Alguns fragmentos das experiências de Doryan nas cartas: “Entrei nas tumbas de nações mortas… Cavalguei com nossas últimas tribos selvagens. Senti o esplendor de cada momento… o esplendor da existência, e é terrível…” Em outro fragmento, “Afiado como uma lâmina, esse desespero por ver, tocar e…” Mais um: “Querido Harry, ensinou-me que a vida… deve queimar com uma chama forte. Sua luz não me cega, nem seu calor me queima. Eu sou a chama, Harry. Eu sou a chama”.

Após anos longe de Londres Doryan Gray retorna, e seu amigo lorde Henri organiza uma recepção convidando os amigos comuns. Quando o Sr. Gray entra na sala onde todos estão esperando o choque sentido por todos é visível. Para espanto de todos ele continuava jovem. Ninguém parece acreditar no que estão vendo. São rostos de perplexidade. Doryan continua jovem enquanto que todos seus amigos estão velhos. Ágata, a tia de Henri, já muito idosa ficou sem palavras e apenas disse: “Doryan você esta…” e Henri completa: “Magnífico!”. Mas, Doryan não se experimenta mais tão magnífico. Na recepção ele se isola na biblioteca da casa e fica visível como o tédio do viver tomará conta do ainda jovem Doryan Gray. O anfitrião o encontra e diz que ele não tem direito a melancolia, pois a vida dele é fantástica… Se lembrando dos relatos das cartas. Entretanto, a experiência da juventude sem fim com suas aventuras e desventuras tem um preço muito alto. E aquela forçaplástica do esquecimento necessário para viver parece ter se arrefecido. Doryan agora vive um turbilhão de sensações provocado pelo espectro do passado. Basil e Sibyl rondam sua vida.

Doryan e Henri finalizam o dialogo. estaçAo saírem da biblioteca e se depararam com uma jovem com uma maquina fotográfica pedindo para que sorrissem. E são fotografados. Ela se apresenta estendo a mão direita em direção a Doryan.

— Emily (Rebecca Hall). Posso? [E pega um cigarro de Doryan] Espero não estar interrompendo suas lembranças.

— O charme do passado é que ficou no passado, responde Henri.

— Espero que não seja também um velho cínico, diz Emily.

— O que há para acreditar? Diz Doryan.

— Nosso desenvolvimento?

— Tudo o que vejo é decadência.

— Religião?

— Uma elegante substituta da crença.

— A arte?

— Uma enfermidade.

— Amor?

— Uma ilusão.

E, como em uma viagem redonda, o filme parece voltar ao inicio, quando o jovem Gray havia retornado do interior para a Capital e foi organizado um recital para acolhê-lo na aristocracia londrina. Todos encantados com a beleza e a suavidade da música tocada pelo recém-chegado. Agora, a cena é bisara os mesmos convidados do inicio todos envelhecidos. A ação corrosiva do senhor tempo tinha afetado a todos, com exceção do eterno jovem Doryan Gray. Neste momento as pessoas não estãoadmiradose nem encantados com a beleza de Gray, os olhares dos convidados estão espantados com tal acontecimento inatual.Todos estavam tendo um tipo estranho de déjà vu.E na cabeça todos se perguntavam: Qual o segredo da eterna juventude do senhor Gray?Diante dos olhares, lá estava o ainda jovem Doryan ao piano tocando, não mais uma suave música como no inicio, mas uma balada agressiva.

Só a jovem Emily fica encantada com a beleza do sr. Gray, pois lembrando Schopenhauer, ela conquista o coração.E vai ao encontro dele convidando para fazer um piquenique, mas ele se recusa dizendo que vai chover. Deste encontro temos o seguinte dialogo:

— Dizem que devotou toda a sua vida ao prazer. Isso é claramente recomendável. Se estiver tão bem quanto você daqui a 25 anos… ficaria muito feliz.

— Posso assegurar, prazer é muito diferente de felicidade. Quer dizer, algumas coisas são mais preciosas porque não duram.

— Sr. Gray… acredito que sei seu segredo. Você tem coração.

— Os que vão além da superfície o fazem por sua conta e risco.

— Que assustador.

Duas questões se impõem neste momento do filme. Doryan revela uma apatia pela vida, seja pela melancolia e tédio, seja pelos tormentos do passado que ele não conseguiu mais a cura. O esquecimento. E, depois de muitas experiências, ele assume a ideia de Basil: “Algumas coisas são mais preciosas porque não duram”. Será que a juventude é valiosa exatamente por não dura? Ele não verbaliza isso, mas fica subentendido que sim. Apesar da mudança de perspectiva, ele apresenta uma ideias a Doryan assustadoras, na visão de Emily, quando diz que: “os que vão além da superfície o fazem por sua conta e risco“, nosso personagem esta lembrando que o que existe de fato é o que é visível, palpável, imanente. A profundidade e transcendência são frutos dos devaneios humanos. Por isso, as pessoasque vão além da superfície correm risco de ver e sentir coisas que não existem. A superfície é o que existe, nada além dela, a epiderme da alma.

No dialogo final entre Doryan e Henri, tem se o encontro da criatura e do criador. Depois que Henri descobre o segredo da eterna juventude de Dorian, eles trovam o seguinte dialogo:

— O que você é?

— Sou o que você me tornou! Vivi a vida que pregou, mas nunca ousou praticar. Sou tudo o que você temeu ser. Mas eu estava tentando. Tentando tanto… ser um homem melhor.

Os dois lutam e Henri lança fogo sobre o retrato que agoniza, mas ele só morre quando Doryan crava uma espada em seu coração. É o triste fim do jovem Doryan Gray.

Referências:

FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos.(Tradução Véra Lucia dos Reis) Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

GIDE, André. Os frutos da terra. (Tradução Sérgio Milliet). Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1986. (Grandes Sucessos da Literatura Internacional, v.10)

GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. São Paulo: Cortez, 1980.

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. (Tradução Marco Antônio Casanova). Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2003. (Conexões, 20).

___. Ecce Homo: como se chega a ser o que se é. (Tradução Artur Morão). Covilhã: Lusofia, 2008.

___. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Tradução José Mendes de Souza). eBooks Brasil: 2002.

___. Crepúsculo dos ídolos: ou a filosofia a golpes de martelo. (Tradução Edson Bini e Márcio Pugliesi). Curitiba: Hemus, 2001.

___. Aurora. (Tradução Antônio Carlos Braga). São Paulo: Escala, 2007. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, v.66)

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. (Tradução Ivo Storniolo). São Paulo: Paulus, 2005. (Coleção História da Filosofia, 6).

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria na vida. 3.ed. (Tradução Genésio de Almeida Moura). São Paulo: Melhoramentos, [1962].

WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. (Tradução Lya Luft). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

WILDE, Oscar. O retrato de Doryan Gray. (Tradução José Eduardo Ribeiro Moretzsohn). São Paulo: Abril, 2010. (Clássicos Abril Coleções, v.4)

1 visualização0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page