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RESSONÂNCIAS NIETZSCHIANAS NO FILME RETRATO DE DORYAN GRAY [PARTE I]

O filme “O retrato de Doryan Gray”(2009), do diretor inglês Oliver Park, é uma ótima adaptação do único romance do escritor irlandês Oscar Wilder (1821-1881). Nele somos colocados frente à ideia da eterna juventude, a velha e sempre nova utopia da juventude sem fim. Contudo, será mesmo tão vantajoso viver sempre jovem? Paralisar a mudança natural e ter uma vida sempre jovem é de fato uma coisa desejável? Ou tal sonho deve ser sempre desejo e nunca realidade?Ou, como o filme também nos faz pensar, será que a juventude é preciosa porque ela não dura?Este filme provocativo nos lança em uma história incrível e instigante. Embora tenha uma trama sem muitas surpresas, ele estimula pensar sobre as questões elencadas e, em várias cenas e diálogos, faz sentir a presença do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Assim,para este ensaio filosófico buscar-se-á apenas estabelecer as possíveis ressonâncias das ideias nietzschianas no filme, e em particular aquilo que podemos denominar filosofia do instante.

Doryan Gray (Ben Barnes) é uma pessoa atormentada pela infância, tímida, pacata e ingênua. Seu avô Lorde Kelson (Jeffrey Lipman) o condenava pela morte da filha Salome, ela não suportou o parto e ele quase não suportou a vida, pois era violentamente surrado por tudo, e as cicatrizes em suas costas revela tal brutalidade. Doryan não conheceu o pai, que era um artista errante, e, ainda muito pequeno,foi enviado para o interior. Só retornou a Londres para assumir sua herança, quando seu avô faleceu, pois era o único herdeiro da família. O filme tem seu inicio real exatamente com a chegada do jovem Doryan Gray a Estação Ferroviária de Londres. Ele tem um olhar deslumbrado pela cidade grande e, ao mesmo tempo, apresenta aspecto de uma pessoa assustada. Com um caminhar perdido, nas proximidades da Estação é assediado por trombadinhas, prostitutas e ciganas que por ali vivem rondando. Neste momento Victor (Pip Torrens), um dos empregados do seu falecido avô, o encontra e o conduz para casa. Ao chegar revela que as coisas estão do mesmo modo, ao dizer:”Nada mudou por aqui deste quando eu era garoto“.

Pouco tempo depois, em um recital acontece sua apresentação à aristocracia londrina. Nele o jovem Doryan Gray tocava uma música suave e as pessoas na plateia ficaram encantadas com a beleza do músico e da música. O artista plástico Basil Hallward (Ben Chaplin),no papel da programação do recital, faz um pequeno desenho do rosto do jovem Gray. Na recepção, após a apresentação musical, quando o jovem é cortejado por um grupo de mulheres, Basil se aproxima e é apresentado ao rapaz pela Sra. Agatha (Fiona Shaw), que diz ser ele um dos melhores artistas da cidade. Naquele momento, fascinado pela beleza do jovem, Basil se apresenta como um humilde estudante da beleza e mostra ao circulo de mulheres o esboço de desenho,que provoca suspiros pela beleza jovial de Doryan.

Com recursos de movimento de câmara e corte, o espectador é lançado do desenho no recital para várias imagens do jovem Gray no ateliê do pintor Basil. A cena mostra o artista em seu ofício, o instante divino de Basil, frente ao encantador Doryan Gray como modelo para seu trabalho: o Retrato de Doryan Gray. Neste momento o rapaz lamenta, que, depois de mais de duas semanas, ainda não conheceu quase ninguém em Londres. O pintor tenta persuadir o jovem afirmado que em festas tediosas não se conhece ninguém interessante, porém não é convincente, então resolve leva-lo em uma festa na casa do lorde Henry Wotton (Colin Firth). Mas, lhe dá um conselho:não ouça tudo o que Henri lhe diz. Oconselho não é levado em conta e o encontro com lordeWotton transformará radicalmente a vida do jovem Gray, como se verá ao longo do filme.

Depois da festa, a cena seguinte nos leva amais uma seção de pintura com Basil, o jovem Doryan, o modelo do retrato que esta sendo pintado, e também se faz presente lordeWotton. Cansado e cheio de tédio, Doryan pergunta ao pintor: “Ainda não se cansou de olhar para mim?” Ao que responde Basil: “Certamente que não. Quanto mais eu olho, mais eu vejo“. Ele apenas indica o óbvio, pois quando estamos deslumbrados e encantados com o outro, e enquanto não estamos cansados, acostumados, acomodados com o mundo, teremos os olhos sempre atentos e abertos para ver a beleza do outro e do mundo. E, por isso, quanto mais olhamos mais enxergamos. Entretanto, o questionamento do personagem principal do filme era na verdade para indicar o seu cansaço do papel de modelo. Para salvá-lo Henry Wotton propõe um intervalo, ao tedioso trabalho, afirmando que conhecia um lugar perfeito para um descanso.

No caminho até o local, eles passam por pessoas em várias situações de pobreza e miséria material e humana, por isso Basil diz para o jovem Doryan: “Entende porque Aghata se empenha em ajudar…”,e ele questiona Henri:”não acha que temos que tentar fazer a diferença?” Ao que lorde Henri responde:”Não quero mudar nada na Inglaterra, a não ser o clima”. Nesta cena sem importância para o conjunto do filme,uma cena de transição, tem-se a primeira ressonância nietzschiana, pois a posição do lorde Wotton faz ressoar uma frase do prefácio do Ecce Homo de Nietzsche, quando ele escreveu: “A última coisa que eu prometeria seria melhorar a humanidade. Não serão por mim erigidos novos ídolos”(2008, p.7).

Eles chegam, ao local perfeito para o intervalo do trabalho, e Henri diz: “Bem vindos ao meu Clube do Inferno“. O lugar era uma taberna, uma Loja de Gim, onde acontecerá a iniciação do jovem Doryan Gray à filosofia do instante,advogada pelo personagem Henry Wotton. A cena é no mínimo insólita para uma pessoa virtuosa. Os três entram no ambiente, uma casa de tolerância, mulheres oferecendo serviços sexuais a todos. Visivelmente, ao sentar a mesa, Doryan se sentiu um estranho no ninho. Ao lado, uma mulher sentada por sobre a mesa de pernas abertas tendo um homem, em uma cadeira, a sua frente com as mãos entre suas pernas. Para dissimular a situação, o casto Basil diz ao jovem: “não se preocupe, ele é médico“. Como se o homem estivesse naquele momento tentando fazer um tipo de exame ginecológico na mulher. Para rebater a dissimulação do artista, Henry inicia sua doutrinação dizendo:”Não existe vergonha no prazer, senhor Gray. O homem só quer ser feliz, mas a sociedade quer que ele seja bom. E, quando ele é bom, raramente ele é feliz. Mas quando se é feliz é sempre bom. Você quer ser bom, não, senhor Gray, e feliz também?“.

Diante da pergunta, o jovem Doryan questiona: “Não há um preço a pagar por este tipo de coisa?“. De forma displicente,lorde Wotton, como se o jovem estivesse falando do preço cobrado por uma prostituta, queesta transando na sala ao lado com a porta aberta, respondeu: “Ela é bem barata.”Doryanrebate: “Não, na verdade estava me referindo ao efeito na...” [Ele é interrompido]. E, de forma impaciente, Henry fala: “Efeito no que?”[Gaguejando, Doryan continua]”Bom, o efeito na alma“. Henry retruca com zombaria: “Na alma?! senhor Gray“.E, com escárnio, Henry levanta um copo de gim e toma um trago dizendo: “Esta é minha igreja“,em um movimento coloca o copo virado sobre a mesa, e com sarcasmo complementa, “e com este gole eu prego a minha alma no altar do diabo.” Na tentativa de pôr um ponto final na conversa, Basil Hallward, afirma: “Você nunca encontrara um filósofo da tolice mais eloquente“. Levanta-se, convida o jovem para retomar o trabalho no retrato. Entretanto, Henry manda ele ir a frente para retocar o fundo do quadro, assegurando que irão em seguida.Ao sair de cena, Basil diz a Doryan: “Seu retrato o espera”. Ele não tinha ideia de quão verdadeira eram aquelas suas palavras no desenrolar do filme. O retrato o esperava e transformaria completamente a vida de Doryan. Neste momento, tem-se o ponto central da iniciação do jovem à filosofia do instante. Com os olhos, ele acompanha o amigo Basil saindo do recinto e de repente seu olhar encontra com o da jovem Sibyl Vane (Rachel Hurd-Wood). Acontece um flerte. E, neste momento, ocorre o seguinte dialogo:

___ Talvez devesse ir falar com ela.

___ [Vacilante Doryan responde] Eu não percebi que ela…

___ Não seja tímido, vá.

___ [Reticente diz] Eu não saberia por onde…

___ Vê, eu invejo você!

___ Eu?

___ Tudo é possível para você,pois você tem apenas duas coisas que valem apena ter: beleza e juventude.

[A cena mostra a jovem Sibyl Vane saindo da taberna acompanhada]

___ Perdeu o momento [o instante].

___ [Para se desculpar Doryan diz] Bom, deve ser o marido dela.

___ É muito sensato. [Henry se inclinando em direção ao jovem, e afirma de forma veemente] As pessoas morrem por bom senso, Doryan. Um momento [instante] perdido por vez. A vida é o momento [instante] e não há futuro. Então sempre faça queimar com a chama mais forte.

O diálogo transcrito cheira filosofia nietzschiana. A proximidade é incrível, além disso, ele não é fato isolado, ao longo de todo o filme vamos sentindo o aroma agradável da filosofia do professor da Basileia, por isso, é possível dizer que no filme,”O retrato de Doryan Gray”, temos a filosofia de Nietzsche em tela.

Para Nietzsche, o instante é um pórtico onde se reúnem dois caminhos contrários, que se opõem um ao outro (2002, p.247). Ele é aquele tempo no qual o futuro e o passado se chocam. E se chocam no exato momento quando somos impelidos a escolher, decidir e definir o rumo de nossa existência. No instante o tempo se anula e se faz a experiência da eternidade. A vida real é o instante presente. Por isso, Henry Wotton, em sintonia com Nietzsche, pode dizer: “A vida é o momento[instante] e não há futuro“, pois só experimentamos o momento presente, este instante é real, o passado e o futuro são miragens. Só o instante germinal é gerador de vida, e nele tem-se a recriação da existência. Por isso, “não há um instante a perder!” (2002, p. 201; 205; 211), grita o fantasma para Zaratustra. Na densidade poética de Tempo Perdido também escutamos o alerta nietzschiano: “não temos tempo a perder”. Ele acontece principalmente quando estamos dominados pelo tédio mais prolongado, no silêncio das noites mais escuras, nas cavernas existências e quando estamos deitados nas sombras das horas envolvidos pela melancolia da vida.

Entretanto, de acordo com Nietzsche,

os homens que conhecem instantes de sublime encanto e que, em momentos comuns, por causa do contraste e da extrema usura de suas forças nervosas, se sentem miseráveis e desolados, consideram tais momentos como a verdadeira manifestação de si mesmo, de seu ‘eu’; pelo contrário, a miséria e a desolação como o efeito do ‘não-eu’; é por isso que pensam em seu meio, em sua época, em seu mundo tudo, com sentimento de vingança. A embriaguez parece-lhes ser a verdadeira vida, o eu autêntico: em tudo o resto veem adversários e inimigos da embriaguez, qualquer que seja a espécie dessa embriaguez, espiritual, moral, religiosa, ou artística (AURORA 50, p.59).

Este é o mundo do homem medíocre, pois para o além-homem no mundo sem embriaguez “a meia-noite é também meio-dia; a dor é também uma alegria, a maldição é também uma benção, a noite é também sol; afastai-vos ou ficareis sabendo: um sábio é também um louco”. (ZARATUSTRA, 2002, p.502). A sobriedade nietzschiana esta em encarar todos os instantes da vida de forma plena, sem subterfujo espiritual, moral, religioso ou artístico.Encarar a vida em seus instantes é para homens fortes, mas ninguém consegue suportar a sensação poderosa, completa, imediata da vida vivida em todos os instantes, sem o esquecimento. Para isso, não existe futuro na mesma medida que não existe o passado. Desta forma, podemos dizer: o homem é o portal do instante, pois a vida é instante, nele existimos. Somos atravessados por ele. A intensidade do viver se dá no instante.

Nesta mesma lógica,o nietzschiano André Gide (1986, p.63-4), no Fruto da Terra, escreveu:

Imaginas que possas, neste instante preciso, experimentar a sensação poderosa, completa, imediata da vida – sem o esquecimento do que ela não é? O hábito de teu pensamento perturba-te; vives no passado, no futuro, e nada percebes espontaneamente. Nós não somos nada, […], senão no Instantâneo da vida; todo o passado aí morre antes que algo do que está por vir aí nasça. INSTANTE! Compreenderás, […], que força tem sua presença! Pois cada instante é essencialmente insubstituível! É preciso que saibas, por vezes, nele concentrar-se unicamente.

INSTANTE! Nele o ser humano é e existe, todavia quando estamos embriagados não percebemos a dinâmica poderosa dos instantes, como se estivéssemos presos numa couraça, a couraça do habito. Pois, só quando estamos presentes à própria vida percebemos os instantes que atravessam a couraça protetora. Somente quando somos fiéis aos momentos da vida vivida, experienciamos uma vida real, que não é simplesmente a soma banal de momentos repetitivos. Ao respondermos e responsabilizamos pela força dos instantes estamos vivos.

O instante é tudo, pois ele é um tempo forte, um tempo radioso, um tempo capaz de mudar nossa existência para sempre, pois basta um ínfimo instante para mudar toda vida. Quanto tempo é necessário para reconstruir um instante perdido? Será possível tal ação? Claro que não, o instante passou e não voltará jamais, pois “não é permitido querer para trás” (NIETZSCHE, 2002, p.223).Assim, como o instante é tudo, ele define nossa existência, por isso apenas ele conta, vale e interessa. É necessário parar o incessante movimento mental entre o passado e o futuro e viver o tempo presente, por isso não há um instante a perder.

[CONTINUA NA PRÓXIMA PUBLICAÇÃO]

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