Não é novidade, como escreveu Charles Dickens, que “toda criatura humana constitui profundo segredo e mistério para todas as outras“, ninguém é transparente ou se conhece totalmente, temos em nós sempre sombras e zonas de profundo desconhecimento. Mesmo a pessoa que, aos quatro ventos, vive bradando que sua vida é um livro aberto, possue páginas lacradas e ninguém tem acesso a elas, pois, de acordo com Antoine de Saint-Exupéry, “em cada um de nós há um segredo, uma paisagem interior com planícies invioláveis, vales de silêncios e paraísos ou jardins secretos“. Por isso, um dos grande dilema das pessoas é saber para quem podemos revelar este segredo que somos? Quem merece caminhar em nossas planícies, vales e jardins? Muita vezes, por precipitação mostramos mais do que deveríamos para algumas pessoas, em nosso entusiasmo acreditamos que estamos diante de alguém que podemos revelar esse paraíso interior, entretanto, o tempo revela que elas não tinham condições para perceber o valor do que estávamos mostrando, não conseguem valorizar e nem guardar para si o que viram e ouviram… “A riqueza que nós temos, ninguém consegue perceber” (Renato Russo, em sua canção O Teatro dos vampiros). Por isso, não podemos pensar que aquilo que temos de mais precioso será reconhecido pelos outros. Além do mais, junto com este lado luminoso, temos pântanos, vulcões e desertos assustadores em nosso universo interior… Assim, quando alguém compartilha de nossa intimidade por algum tempo, gradativamente acontece um movimento duplo: por uma lado, vamos mostrando um pouco dessa paisagem existente em nós e, por outro lado, vamos também descobrindo um pouco da geografia interior dessa pessoa. A topografia humana é marcada por jardins e pântanos, planícies e desertos, luz e sombra, que vão se descortinando na convivência diária. Exatamente por isso, precisamos ter muito cuidado. Ah! Como seria bom mostrar o que somos apenas para pessoas que não vão usar o que revelamos contra nós mesmo, como canta o Renato Russo, na canção Andreia Doria: “Quero ter alguém com quem conversar, Alguém que depois não use o que eu disse contra mim.”… Só este tipo de relação é alegradora, pois na maioria das relações tudo o que se diz e faz é usado contra você num dado momento, principalmente, quando nos contradizemos. Como se a contradição não fosse característica da condição humana, ser múltiplo. Entretanto, não podemos esquecer de duas coisas: A primeira coisa é que, como ensinou Marcel Proust, no Caminho de Guermantes, “uma pessoa não está… nítida e imóvel diante dos nossos olhos, com as suas qualidades, os seus defeitos, os seus projetos, as suas intenções para conosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros, através de um gradil), MAS É UMA SOMBRA em que não podemos jamais penetrar, para a qual não existe conhecimento direto, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de palavras e até de atos, palavras e atos que só nos fornecem informações insuficientes e alias contraditórias, uma sombra onde podemos alternadamente imaginar, com a mesma verossimilhança, que brilham o ódio e o amor”. As pessoas, como nós, nunca vão se mostrar totalmente, são sombras impenetráveis. E, a segunda coisa, é que temos esquemas pré-moldados para nos esquivar do que nos desagrada, e mecanismo de defesa do que nos assusta… Além disso: “Como diz Bergson, não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, só percebemos o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devidos nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas” (Gilles Deleuze). Por isso, não podemos e nem devemos nos mostrar para qualquer um, pois se esta pessoa não compartilha minimamente com nossa cosmovisão, vamos rapidamente nos decepcionar … Somos luz e sombra, somos beleza e horror, não, melhor dizendo, como poeticamente escreveu Lulu Santos:
“Nós somos medo e desejo Somos feitos de silêncio e som Tem certas coisas que eu não sei dizer“.
Nunca saberemos o que assusta mais se o nosso silêncio ou nossas palavras; ou se nossos desejos ou nossos medos…
Somos multiplicidade… Como disse Nietzsche, em Gaia Ciência:
“Eu sou vários! Há multidões em mim. Na mesa de minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles. Há um velho, uma criança, um sábio, um tolo. Você nunca saberá com quem está sentado ou quanto tempo permanecerá com cada um de mim. Mas prometo que, se nos sentarmos à mesa, nesse ritual sagrado eu lhe entregarei ao menos um dos tantos que sou, e correrei os riscos de estarmos juntos no mesmo plano. Desde logo, evite ilusões: também tenho um lado mau, ruim, que tento manter preso e que quando se solta me envergonha. Não sou santo, nem exemplo, infelizmente. Entre tantos, um dia me descubro, um dia serei eu mesmo, definitivamente. Como já foi dito: ouse conquistar a ti mesmo.”
Como somos essa paisagem múltipla, o desafio que temos é descobrir quem somos, precisamos conquistar essa paisagem, num tipo de movimento de territorialização, pois só assim teremos condições de revelar para os outros quem somos de fato… O certo é que, não somos um, somos vários e, isso é problemático para o tipo de organização social que vivemos. No modelo de sociedade que vivemos, as relações humanas buscam unidade, segurança e identidade e somos sempre multiplicidade, incerteza e diferença. E só quando conseguimos ver mais beleza na diversidade, quando as múltiplas paisagem não nos assustam, poderemos conviver neste mundo que sempre foi diverso e múltiplo. A palavra chave é respeito, precisamos respeitar e ser respeitados em nossas diferenças, pois se só enxergamos pântanos e vulcões nos outros as relações serão impossíveis. Os vales, as planícies e jardins precisam aparecer mais do que os pântanos, vulcões e desertos, pois nunca somos inteiramente uma coisa ou inteiramente outra, somos grandezas e mazelas, virtudes e vícios, heróis e bandidos, sonhos e pesadelos…
[Agradeço ao amigo Nertan Silva-Maia pela ilustração intitulada MUTAÇÕES EM MIM]
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