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NIETZSCHE, EXPERIÊNCIA DO PENSAMENTO E O FILME QUESTÃO DE TEMPO

Nietzsche influenciou muito o pensamento filosófico no século passado e continua influenciando o nosso tempo. Para ele o ofício do filósofo é o de construtor de conceitos como declara ao escrever: “os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los” (apud: DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.11-2). Essa perspectiva nietzschiana foi assumida por Gilles Deleuze, como você pode ver no texto “A filosofia na perspectiva de Gilles Deleuze”, publicado neste Blog [dia 17 de dezembro de 2015], onde busquei revelar que a especificidade do pensamento filosófico deleuziano é o de ser criador de conceitos. Nietzsche edificou múltiplos conceitos em sua produção filosófica, e essa produção se sustenta em duas peculiaridades do pensamento nietzschiano: o perspectivismo e o experimentalismo. Assim, para ele além de produzir conceitos, a filosofia como expressão da vida, que é, em si, perspectivística e singular, deve provocar um tipo de experiência do pensamento. Por isso, a filosofia de Nietzsche pode ser classificada como uma filosofia experimental, e, ele mesmo explicita essa postura, no §1.041 de sua obra póstuma intitulada “A Vontade de Potência” ao escrever: “Filosofia, como até agora entendi e vivi, é a voluntária procura também dos lados execrados e infames da existência. Da longa experiência, que me deu uma tal andança através de gelo e deserto, aprendi a encarar de outro modo tudo o que se filosofou até agora […] Uma filosofia experimental, tal como eu a vivo, antecipa experimentalmente até mesmo as possibilidades do niilismo radical; sem querer dizer com isso que ela se detenha e uma negação, no não, em uma vontade de não”. E, para reforçar sua visão de filosofia experimental e viva, num outro fragmento também póstumo, declarou: “Sempre escrevi minhas obras com todo o meu corpo e minha vida: ignoro o que sejam problemas puramente espirituais”. Assim, fica claro, que a proposta filosófica de Nietzsche tem como intenção primeira fazer experimentos com o pensar, “perseguir uma ideia em seus múltiplos aspectos, abordar uma questão a partir de vários ângulos de visão, tratar de um tema assumindo diversos pontos de vista, enfim, refletir sobre uma problemática adotando diferentes perspectivas” (MARTON, 1993, p.47). Então, como diz Vattimo, “devemos considerar a filosofia de Nietzsche como um pensamento experimental” (1990, p.57), e a grande experiência do pensar proposta por ele está na potente página do Gaia Ciência § 341 que transcrevo a seguir: “O mais pesado dos pesos. – E se um dia, ou uma noite, um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vive-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequencia – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!’. – Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino’! Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: ‘quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes’? pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (1974, p.216-7). Na preleção de Heidegger sobre O eterno retorno do mesmo, o professor da Floresta Negra questiona: “Onde fica aqui o caráter de gaia [alegria]?”, para ele essa ideia nietzschiana é uma perspectiva terrível que provoca muito mais pavor. Nada de alegria, nada de divertimento e nada de prazer (HEIDEGGER, 2014, p.188-9). Porém, quando nos deparamos com a explicação do Professor da Basiléia podemos sentir a alegria do anuncio do eterno retorno. Em seu livro póstumo A vontade de potência (Parte IV, § 242-4), Nietzsche escreveu algumas das mais belas considerações sobre seu pensamento mais abissal, mais pesado, o peso mais pesado, como podemos ler no anuncio do Eterno Retorno citado anteriormente. Em sua explicação ou aplicação, o eterno retorno é um tipo de regra para a vida: “Se você assimilar esse pensamento entre os pensamentos ele o transformará. Se em tudo que você quiser fazer começar por se perguntar: quero fazê-lo um número infinito de vezes?, isso será para você o mais sólido centro de gravidade… Minha doutrina ensina: viva de tal modo que você deva desejar reviver, é o dever – pois de todo modo você reviverá. Aquele para quem o esforço é a alegria suprema, que se esforce! Aquele que ama acima de tudo o repouso, que repouse! Aquele que ama acima de tudo se submeter, obedecer e seguir, que obedeça. Mas que saiba onde está sua preferência e que não recue diante de nenhum meio”. “Não recue nem para ganhar impulso, seu merda”; brinca o professor Clovis Barros Filho, em uma entrevista bem-humorada ao apresentador Jô Soares, comentando esta ideia nietzschiana. Essa ideia vale a própria vida, vale a eternidade! A primeira vista esta ideia do eterno retorno é assustadora, desprezível e apavorante para alguns ressentidos com a própria vida, e para eles só de imaginar viver a mesma vida sem nenhuma mudança sentem vertigens. Entretanto, quando a pessoa se considera e se sente realizada no viver, quando consegue afirmar a vida, pois descobriu as suas preferências e as vive intensamente, não se perturba com a possibilidade do eterno retorno, na verdade sente uma satisfação incrível com essa possibilidade de repetir sua existência. Assim, esta regra nietzschiana pulveriza o meio termo. Nada de vontades pela metade ou de semiquereres, como escreveu Deleuze (2001), “o que você quiser, queira-o de tal modo [e com toda intensidade] que também queira o seu eterno retorno”. Este desejo do eterno retorno está ligado ao conhecimento de nossas preferências, e isso liga-se diretamente a questão de reconhecer as vozes do coração, e reconhecendo nossas preferências precisamos viver intensamente e eternizar os momentos. Como sabemos, e Horácio escreveu de forma primorosa, “a vida é curta; abrevia as remotas expectativas. Mesmo enquanto falamos, o tempo, malvado, nos escapa. APROVEITE O DIA, e não te fies tanto no amanhã.” Vivendo desta forma proposta por Horácio, o eterno retorno de Nietzsche não será um drama existencial, muito pelo contrário, é a própria potencialização e afirmação da vida. Numa outra tradução da obra de Horácio podemos ler o final do texto da seguinte forma: “[…]. Colha o dia, confie o mínimo no amanhã” (Horácio, Odes, 1.11), e vamos colher o dia na perspectiva de esperar o possível retorno eterno de todas os nossos instantes vividos e sofridos. Entretanto, é importante separar as coisas: uma coisa é a visão horaciana deste sentimento poderoso de viver profundamente e sugar a essência da vida, e outra, é uma visão grosseira e vulgar de um tipo de “filosofia” de botequim que reduz o Carpe Diem num hedonismo irresponsável. Como se o pensador estivesse advogando a busca do prazer pelo prazer, como naquele filme hollywoodiano: Curtindo a vida adoidado (1986). Não é isso o colher a vida horaciano. Nem o eterno retorno e nem o carpe diem podem ser reduzidos a este tipo de simplismo, que desqualifica as densas propostas dos pensadores Nietzsche e Horácio. Colher o dia, na versão horaciana, e viver o eterno retorno do mesmo, na versão nietzschiana, é responsabilizar-se por tudo, viver as preferências e aproveitar a breve existência que temos, pois não podemos e nem devemos desperdiçá-la. Então, a experiência do pensamento proposta pelo filósofo alemão, é uma forma de cultivar o compromisso e a responsabilidade da e na vida. Vivendo as preferências nessa vida, pois, nunca se sabe, podemos repeti-la n-vezes. Mas não é só lendo as obras deste pensador que fazemos essa experiência do pensar. Não tenho dúvida que o cinema é a uma das mais potentes experiências do pensamento que temos hoje em dia, sem claro esquecer ou desprezar a literatura e o teatro. Porém, o cineasta coloca num filme o pensamento em movimento, e, com isso, nos lança num mundo de possibilidades inimagináveis e impensáveis. Assim, quando assistimos um filme, estamos fazendo múltiplas experiências do pensamento: ético, estético, político, etc. É uma oportunidade sensacional para lidarmos com assuntos complicados, densos e difíceis. Nesta perspectiva ao assistirmos o filme Questão de tempo, realizamos e fizemos um tipo de experiência ética, pois, ao assisti-lo somos provocados a pensar sobre a questão da vida e o tempo, nas escolhas cotidianas. Ele é um filme simples, não é dinâmico, não tem uma história dramática, não é de ação, não é uma obra-prima cinematográfica. Ele é uma comédia romântica, no início é até monótono, mas é um filme com ideias interessantes e importantes para a vida. A história trata de questões relevantes tipo: o relacionamento humano, focando quatro aspectos: relação entre pai e filho, relação entre irmãos, a relação conjugal e a relação entre amigos. Temos nele o retrato do cotidiano banal de uma família aparentemente normal: pai, mãe e um casal de filhos. Quando Tim, um jovem simpático, bem-humorado e meio atrapalhado, completou 21 anos seu pai o chamou para uma conversa onde revelou o segredo da família, os homens dessa inusitada família tinham o poder de viajar no tempo. O patriarca da família de viajantes no tempo lhe ensina a técnica para viajar. Ele precisa entrar num lugar bem escuro, colocar as mãos numa determinada posição e pensar no exato instante que deseja voltar. E como num passo de mágica estará lá. Porém, essas viajem no fluxo temporal só podem seguir um caminho: o passado. Não é possível ir para o futuro. A regra é clara: ele só pode viajar para lugares onde já esteve. Tipo o Eterno Retorno do Nietzsche. Ou seja, ele herdou uma capacidade de retornar no tempo, apenas isso, nada mais do que isso. Lógico que isso em si já é uma grande vantagem no filme. Porém, a questão é como utilizar essa vantagem, para assim definir sua preferência na e da vida. O personagem Tim começa suas aventuras no tempo com futilidades. Atrapalhado, volta algumas vezes para mudar a mesma cena. Neste ponto que o filme parece um besteirol, apenas um filme engraçado. E algumas pessoas poderiam ficar ligadas apenas ao fato do personagem principal ter um poder mágico de viajar no tempo, porém este foi o artifício criado pelo cineasta para pensar uma coisa incrível relacionada a forma que estamos administrando nosso tempo. A vida é uma questão de tempo, por isso podemos indagar: Como estamos lidando com os nossos dias? Estamos vivendo com intensidade essa oportunidade diária? Ou estamos desperdiçando com as preocupações futuras, problemas imaginários e muitas vezes tolos? Como estamos construindo nossas relações interpessoais? Questões relevantes que precisamos refletir com seriedade, e são questões que rondam essa produção cinematográfica. A história se desenrolou sem muito consistência, o jovem realizou seu plano, qual seja, o de usar sua capacidade de deslocamento temporal a serviço de encontrar a mulher de sua vida, tipo conto de fadas, suas preocupações são aquelas da juventude: acertar na escolha profissional, não vacilar com ninguém, ter uma performance sexual invejável. Até o momento quando enfrentou um grande problema. Ele já tinha encontrado a mulher de sua vida, estava casado com Mary e tinha uma filha, a Posy. Quando a vida parecia completa e feliz, sua irmã Kit Kat sofre um grave acidente automobilístico, ao receber a notícia, ele como narrador fala, como se estivesse pensando, o seguinte: “Há uma música do Baz Luhrmann chamada Sunscree. Diz que ‘se preocupar com o futuro é tão eficaz quanto desenvolver uma equação de álgebra mascando chicletes’. Os verdadeiros problemas de nossas vidas sempre serão coisas que nunca passaram por nossa mente preocupada”. Parece uma constatação óbvia, mas, na verdade não é, nossas preocupações são colocadas à prova quando estamos vivendo algo que nunca imaginamos viver. Os problemas reais exorcizam todas os pseudoproblemas, frutos de nossa imaginação fértil e desocupada. Tim nunca tinha vivenciado algo tão dramático e intenso. Naquele instante, pensou que a saída seria usar seu poder para solucionar aquela situação. O acidente de sua irmã era consequência das escolhas dela, porém, queria poupa-la de ter que sair da situação com as próprias pernas, escolhendo retirar-se da cilada que entrou. Tim acreditava que poderia resolver simplesmente voltando no tempo. Tenta a primeira vez, volta no tempo o suficiente para evitar o desastre da irmã, busca sua irmã embriagada e triste para festa de aniversário da sobrinha Posy, mas percebeu que isso não resolveu o problema. Faz uma segunda tentativa, e retorna no momento fulcral da vida de Kit Kat, na festa onde ela conheceu o namorado, que se constituiu como o problema de sua vida, voltando no tempo ela descobriu na origem que o cara ficou com ela por acaso, como ficou com outra mulher qualquer. Sentiu a dor da contingência humana, saber que somos substituíveis, que somos todos desnecessários. Ela num ataque de fúria agride o rapaz e como não começou uma relação com aquela figura, sua vida toma novo rumo, os dois voltam, e como no filme Efeito Borboleta, a surpresa. A vida do personagem principal também tinha se transformado. Sua filha Posy agora era uma criança completamente diferente, era um menino. Assustado com o resultado de sua escolha, vai conversar com seu pai e escuta o seguinte: “a cada vez que você modificar alguma coisa no passado, terá um filho diferente”. Neste momento conhece os limites de seu poder, essa nova regra lança Tim na encruzilhada: precisa escolher entre salvar a irmã do acidente ou ter sua filha de volta. Resolve voltar e deixar a irmã resolver sua vida no presente. Ela tinha que livremente escolher o rumo de sua vida, cortar a relação com o namorado e abandonar o álcool, fazendo sua escolha como todos os seres normais. A vida é um projeto subjetivo e somos todos responsáveis pelas escolhas que fazemos. Sem ajuda mágica, mas com o apoio da família, Kit Kat conseguiu resolver este drama pessoal, se casou e tornou-se mãe. A comédia romântica ganha ares de drama novamente com o anúncio do câncer do pai do Tim. A partir desse momento e seus desdobramentos temos a grande lição do filme. Numa das últimas conversas com seu pai vivo, Tim recebeu a seguinte orientação para a vida. Essa orientação, ele chamou de fórmula secreta para a felicidade. Ele explica que ela era dividida em duas partes: A primeira era manter e continuar uma vida simples, vivendo um dia de cada vez como todo mundo faz. A segunda parte do plano, seu pai falou para ele viver os dias de novo, quase do mesmo jeito. Na primeira vez com todas as tensões e preocupações que nos impede de notar como o mundo é bom, que impedem de ver a graça do mundo, mas, na segunda observando tudo. Coisa possível só no mundo mágico do cinema. Ele até experimenta e vive um tempo essa fórmula, porém, o discípulo resolve superar o mestre, e, assim criou sua própria fórmula da felicidade, depois da morte do pai e o nascimento do seu terceiro filho, que o impedia agora de voltar no tempo para ver o seu amado pai, descobriu o segredo da vida, e nos diz a lição que tirou das suas viagens no tempo: “A verdade é que não volto mais no tempo, nem por um dia. Tento viver cada dia como se tivesse escolhido propositalmente voltar para este dia, para curti-lo como se fosse o último dia de minha vida, um dia inteiro de minha vida simples e extraordinária”. Esse plano para felicidade de Tim tem ressonância com as ideias do eterno retorno de Nietzsche e o carpe diem de Horácio. Viver com intensidade como se fosse repetir infinitamente aquela vida. Escolher e apreciar, ou colher, cada instante da vida em seus detalhes mais insignificantes, assim afirmar a vida como ela é. Viver um dia de cada vez, saboreando o tempo não deixando as preocupações nos retirarem do presente. Observar atentamente o dia que estamos vivendo. A vida feliz está nos detalhes banais e cotidianos da nossa vida simples, comum e singular e, por isso, extraordinária. Estamos fazendo juntos uma viagem no tempo todos os dias de nossa existência. Precisamos aproveitar cada dia e fazer o melhor e assim aproveitar esse passeio maravilhoso que é a vida.

REFERÊNCIAS:

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Porto: Rés, 2001.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. 3.ed. São Paulo: 34, 2010.

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvalorização dos valões. São Paulo: Moderna, 1993.

NIETZSCHE, Fridrich. Gaia ciência. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p.195-231. (Col. Os Pensadores).

VATTIMO, Gianni. Introdução a Nietzsche. Lisboa: Presença, 1990.

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