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LEITURA, ESCRITA E A FILOSOFIA DA DIFERENÇA: Delírio, Alucinação e Vertigem

Não lemos ou escrevemos para reforçar identidades cristalizadas… “Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida […] Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (DELEUZE). Pela escrita e leitura somos atravessados por fluxos intensivos, eles nos ajudam a delirar, nos produz saudáveis alucinações e suaves vertigens, assim podemos dizer como escreveu o poeta Belchior:

“A minha alucinação É suportar o dia-a-dia E meu delírio É a experiência Com coisas reais”

A vertigem, o delírio e a alucinação nos permitem viver fora das prisões da sociedade de controle. Com elas abandonamos “as cinzas das horas” e nos fincamos na experiência presente com toda intensidade, seja no ato criativo da escrita ou no potente exercício da leitura. A escrita poética ou não poética nos permite experimentar outras vidas e são, deleuzianamente falando, ROTAS DE FULGA. Essa ideia foi brilhantemente sintetizada por Mia Couto nas seguintes palavras: “pouco vale a leitura se ela não nos fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não nos deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos, outras vozes.”. A escrita e a leitura são instrumentos para desmontarmos as armadilhas de todas as identidades que querem naturalizar-se em nós. As identidades (pessoal, racial, nacional, de gênero e etc) são construções histórico-sociais e não produtos de uma “natureza humana” rígida e fechada. Com a leitura e a escrita conseguimos REDESENHAR essa armadilha “biologizante”, ROMPER com as identidades impostas e ABRIR para outras condições nômades. Além disso, como ensinou Mia Couto, o segredo dessa transvalorização “é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades. É fácil sermos tolerantes com os que são diferentes. É um pouco mais difícil sermos solidários com os outros. Difícil é sermos outros, difícil mesmo é sermos os outros”. Nessa citação, temos também a constatação da dificuldade do exercício da alteridade. A relação EU e o OUTRO nunca é tranquila, principalmente quando nos centramos egoisticamente e não temos interesse e nem sensibilidade para perceber o outro diferente de mim ao meu lado, parece quase impossível se colocar no lugar dele. Nos fechamos em nosso mundo. Mas, as práticas saudáveis da escrita e leitura proporcionam uma abertura para novos mundos, nos faz experienciar aventuras em novas vidas, novas lógicas, novas realidades. Saímos do mundo rígido das identidades e nos permitimos entrar no mundo nômade da diferença e nele podemos viver intensidades… A vertigem, a alucinação e o delírio nesta perspectiva não são ruins e nem problemáticas, na verdade na filosofia da diferença são forças contra as dominações e contra tudo que sufoca e aprisiona. Algumas identidades não só sufocam e aprisionam, elas provocam o adoecimento e podem até matar. Mas, existe saída, Deleuze nos ensinou que LITERATURA É DELÍRIO e, ao mesmo tempo, SAÚDE, pois “a saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta”. A invenção é um saudável delírio, que nos atravessa como fluxo intensivo produtor de alucinações e vertigens. De acordo com Deleuze, o “fim último da literatura [é] pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida”. O sentido da produção escrita para Deleuze está em liberar a vida aprisionada pelo pensamento representativo e na escrita como produção da realidade, na experiência do pensamento diferencial, criar novos povos, outras lógicas e vidas intensas. Assim, nessa experiência do pensamento, na escrita e leitura podemos “arriscar tudo de novo com paixão; Andar caminho errado pela simples alegria de ser” (Belchior). E, desta forma, viver os delírios, as alucinações e as vertigens do realismo poético da maneira como divinamente escreveu Fernando Pessoa:

“O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.”

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