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cleverfernandes196

DOR, ÓDIO E LIBERDADE

Escrever sobre dor num período pandêmico equivale a chover no molhado, não acrescenta em nada, não muda nada, não é produtivo, pois este período é marcado por múltiplas dores, aquelas provocadas pelo isolamento social, diante do desconhecido vírus mortal, sofrimento da avalanche diária de mortes anunciadas pelos meios de comunicação e nas redes sócias. Somado a isso, o peso da dor sem um último adeus já que não era permitido velar os entes queridos falecidos da doença produzida pelo vírus. Este rito fúnebre tem um papel importante na vida, aquela dor do adeus na sala de velório, os momentos de oração e sepultamento, tão necessários para seguirmos a vida depois daquele choroso adeus. Num sepultamento, dependendo da proximidade afetiva, a sensação que se tem é que estamos enterrando o nosso próprio coração, um pedaço de nossa própria vida parece que fica ali naquela cova fria, escura e triste. Por isso, não existem palavras confortadoras para quem está vivendo este momento, pois a morte impõe o silêncio e ninguém tem palavras para diminuir aquela dor latente. Quem está passando por essa situação é afetado por sentimentos conflitantes: negação do fato, isolamento, raiva diante daquela vida interrompida como ação injusta, barganha por uma intervenção divina para reverter aquela morte (mesmo oferecendo trocar de lugar com o falecido), depressão fruto da dor profunda e desespero e, por último, a aceitação do caráter irreversível da situação. A dor paralisante e sufocante do início se transforma quando chegamos nessa aceitação da perda, mesmo sendo difícil. Porém, sem a aceitação essa dor petrifica a vida. Quando estamos submetidos à dor e, consequentemente, mergulhados numa tristeza profunda, perdemos a esperança no futuro e, até mesmo, no presente; assim ficamos petrificados no passado, particularmente, naquele momento fatídico do anúncio da morte do ente querido. A ausência daquele que amamos produz uma dor latente, uma saudade infinita, que iniciou com aquela notícia da morte da alma da nossa alma. E essa saudade sem fim foi muito bem descrita pelo poeta Chico Buarque no poema Pedaço de mim:

Oh, pedaço de mim


Oh, metade afastada de mim

Leva o teu olhar

Que a saudade é o pior tormento

É pior do que o esquecimento

É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim

Oh, metade exilada de mim

Leva os teus sinais

Que a saudade dói como um barco

Que aos poucos descreve um arco

E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim

Oh, metade arrancada de mim

Leva o vulto teu

Que a saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto

Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim

Oh, metade amputada de mim

Leva o que há de ti

Que a saudade dói latejada

É assim como uma fisgada

No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim

Oh, metade adorada de mim

Lava os olhos meus

Que a saudade é o pior castigo

E eu não quero levar comigo

A mortalha do amor

Adeus

A clareza das imagens poéticas revela apenas o fim de um amor, mas podemos pensar nessa separação abrupta da morte que exige produzir uma mortalha para o derradeiro adeus. A saudade é o castigo de quem fica, ela dói latejada diante da realidade irreversível da morte. Entretanto, à essa dor da separação por causa da morte é acrescentada uma dor extra quando estamos diante do autoextermínio, pois, o suicídio gera uma dor a mais, sempre deixa uma pergunta sem resposta: por que ele se matou? Mesmo quando existe um bilhete, carta, áudio ou vídeo, declarando as razões e motivos daquela ação desatinada de tirar a própria vida. Os que ficam aqui, sempre terão dúvidas, não acreditarão nunca naquelas palavras. Ficam oscilando entre a dor da saudade, a dor da dúvida e a dor da raiva de se sentir abandonado. Porém, no fundo, o desejo que lhe atravessava é dar-lhe novamente a vida para sentir o calor da alma de nossa alma; poder afagar e ouvir aquela voz de quem amamos tanto e a quem daríamos a própria vida. Assim, podemos perguntar, como findar essa dor? Aquela fase do luto indica que só quando aceitamos seguir a vida superamos a dor que nos atravessa e corta a carne, que até parece que não é possível pôr um fim. A intensidade da dor é vivida como quem vive numa prisão perpétua, entretanto, é possível quebrar os grilhões da dor. A vida serena, tranquila e até mesmo feliz existe após a tragédia. A chave daquela prisão encontra-se dentro de cada um e não fora do nosso coração. O grande problema é que a tristeza nos retira a confiança. Os prisioneiros do passado não acreditam em libertação, algo muito parecido com as pessoas que alimentam o ódio contra alguém que não compreendem como é possível manter a calma. Não percebem que são prisioneiros desse sentimento e que manter vivo este ódio dentro de si é tornar-se escravo, pois quando somos afetados por esse sentimento, permitimos ser controlados pela pessoa objeto da nossa ira. A libertação está em não deixar que essa pessoa lhe roube mais nada. Nem o seu tempo, nem a sua atenção e nem o seu humor. Essa determinação é fundamental, uma vez que quando se deixa ser sequestrado por este sentimento, quando o coração está transbordando de ódio, a pessoa torna-se um personagem em história alheia, um coadjuvante na história de outra pessoa. Só é possível retomar a própria vida quando se liberta desse sentimento. Assim, quando não damos atenção e não nos deixamos ser náufragos deste sentimento, voltamos a tomar as rédeas da nossa vida e nos tornamos protagonistas de nossa própria história. Ninguém é livre quando se deixa ser conduzido pelo ódio ou pela dor da ausência de quem partiu.

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