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CHERNOBYL A MINISSÉRIE DA HBO

Hoje terminei de assistir a minissérie Chernobyl da HBO. São cinco episódios que o cineasta criou, produziu e recriou, os acontecimentos do maior desastre nuclear do planeta, numa certa perspectiva e a partir de interesses políticos visíveis. A narrativa tem seu início, dia 26 de abril de 1988, exatamente dois anos depois do desastre, com um personagem gravando em fitas K7 (fita magnética que registrava a voz humana, hoje peça de museu) sua versão daqueles dias tensos vividos em 1986. A produção cinematográfica é padrão HBO, aos olhos de consumidor, impecável e de bom gosto fotográfico, de montagem e etc. Não sou técnico para detectar falhas nessa produção, e não tenho interesse nestes detalhes. Como compreendo, na perspectiva deleuziana, que arte é um modo de pensamento, minha intenção foi tentar entender o que dá para pensar a partir dessa minissérie? Que tipo de pensamento essa produção produz? Minha preocupação inicial foi questionar: a quem serve essa opção narrativa? Quais os interesses defendem essa produção cinematográfica? Essas questões são importantes, principalmente, na nossa época da pós-verdade. Por isso temos que indagar: Em que medida é possível pensar na verdade história destes acontecimentos, ou acreditar na fidelidade daquilo que está sendo projetado. A questão da verdade não é secundaria, mas, também não podemos esquecer que estamos diante de uma produção artística. Afinal, que relação temos entre arte e verdade? Por um lado, não podemos ser ingênuos e imaginar que a produção cinematográfica tem o compromisso de reconstruir pari passum os fatos históricos; por outro lado, não podemos num cinismo fechar os olhos para os interesses da produção. A verdade é construção, mas sempre respeitando e se fundamentando nos fatos. Mas, alguém poderia dizer nietzschianamente, os fatos não existem, o que temos sempre são interpretações sobre os fatos. Entretanto, nessa postura o filósofo alemão não está advogando um postura tipo a pós-verdade. Podemos afirmar que o perspectivismo nietzschiano defende a pluralidade, ele não trata de múltiplos pontos de vistas sobre os fatos, mas múltiplos fatos em cada ponto de vista. Porém, volto a afirmar, Nietzsche não é o teórico da pós-verdade, não estamos falando de narrar uma perspectiva dos fatos ao sabor de minhas crenças e convicções pessoais, mas sim de forjar interpretações fundamentadas na realidade fluida e dinâmica.

Assim, estamos diante de uma interpretação artística dos acontecimentos de 1986. Não se trata aqui de subordinar a arte a verdade histórica, os fatos são inspirações para criação artística. A arte deve e precisa de sua liberdade criativa. O cineasta com sua imaginação tem liberdade poética para colocar em movimento sua percepção daqueles fatídicos e dramáticos momentos da história da antiga URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A questão da verdade não pode ser esquecida, e isso fica claro logo no início da produção cinematográfica. O persongem central da minissérie faz a seguinte indagação: “Qual o preço da mentira?” Ele responde que o preço da mentira não está em confundi-la com a verdade, mas “o perigo real é que se ouvirmos mentiras o bastante, não reconhecemos mais a verdade“. A arte mesmo não tendo compromisso com a verdade, não pode servir de instrumento da e para a mentira, o preço da mentira é muito alto.

Arte é pensamento, por isso todo o processo criativo é fruto do pensar. Escolher as estratégias narrativas, o tipo de gênero, a estrutura e a linguagem da produção compõe o que se quer gerar. Quais os afetos e perceptos que se deseja provocar. Arte é afecção, ela intencionalmente aflinge. O interessante neste caso é que a produção baseada numa tragedia monumental, faz opção narrativa caricatural dos personagens. O cineasta produziu um povo imbecializado pela mentiras oficiais, os dirigentes do partido comunista como verdadeiras peças do cartum, e uma intelectualidade ingênua, infantilizada e acovardada pelos dispositivos de controle. Medo da polícia secreta do pensamento, medo da poderosa KGB. Não quero dizer que as caricaturas não ganhe vida e não assumam postos no poder, temos exemplos reais na atualidade, estamos vivendo uma insólita irrealidade cotidiana, a própria vertigem do real, tempos sombrios. Além da narrativa caricaturada, a produção da minissérie criou sátiras. Apenas para exemplificar, no momento do julgamento para determinar os responsáveis pelo desastre, quando o físico professor Lagasov está prestando seu depoimento no tribunal, narrando passo a passo, minuto a minuto, o que aconteceu nos instantes que culminou com a explosão. As cenas dramatizadas não parecem reais, são dignas de um desenho animado. É inacreditável que o comportamento dos técnicos da usina fosse aquele de baratas tontas que não sabiam o que fazer. Naquele momento, o telespectador é lançado, ou melhor, é teletransportado para outra usina nuclear, está em Chernobyl e de repente aparece ou parece estar em Springfield, na usina do senhor Burns, do desenho animando Os Simpsons. Num tipo de sobreposição, naquele instante cinematográfico, Chernobyl tornou-se Springfield, os técnicos estão agindo como Homer, Lenny, Carl e Larry. Ninguém sabia o que fazer, como no famoso desenho animando. A leveza da arte oculta os dramas das vidas reais, pois ao contrário do desenho, onde os personagens podem explodir a usina, podem manipular os objetos radioativos até deixar um cair em suas costas sem sofrer nenhuma consequência. No mundo real não saber o que fazer dentro de uma sala de comando de uma usina nuclear tem consequências trágicas. Na vida real, aqueles técnicos desorientados e sem uma liderança competente pagaram um alto preço. Mas, quem foi responsável pelo maior e pior acidente radioativo do Planeta? O professor Lagasov nos diz que foi a mentira como política de Estado. Num final dramático no tribunal ele falou:

Por causa de nossos segredos e mentiras estamos sempre em terreno perigoso. As mentiras são praticamente o que nos define. Quando a verdade ofende, nós mentimos e mentimos, até que não nos lembramos mais que ela existe, mas a verdade ainda existe. Cada mentira que contamos gera uma dívida com a verdade. Cedo ou tarde, essa dívida deve ser paga

E assim poderíamos retomar a pergunta do primeiro episódio: “Qual o preço da mentira?“. Lá o preço foi um monstruoso acidente nuclear, milhares de vidas devastadas, muitos mortos e feridos. No Brasil a vertigem de uma democracia agonizante.

Para finalizar, podemos dizer que o pensador anarquista Mikael Bakunin, em seu prognóstico sobre o controle do pensamento pelo Estado, tinha razão ao escrever que “o Estado nunca poderá estar seguro de que pensamentos proibidos e perigosos não deslizem, de contrabando, na consciência das populações que ele governa”. A minissérie nos revela logo no início exatamente isso, a impotência estatal no controle do pensamento. As primeiras cenas mostram como informações ultra-secretas sobre o desastre na usina nuclear de Chernobyl vazaram do território soviético, foram contrabandeadas, em fitas K7, numa logística digna dos filmes de espionagem, e tudo aconteceu nas barbas da temida polícia secreta, a KGB, e a partir desse vazamento temos outro pensamento sobre Chernobyl e sobre a antiga URSS.

Agradeço ao Nertan Silva-Maia, amigo e colaborador desde blog, pela ilustração. Denominada “Chernobyl” (Giz de cera s/ papel Canson, 42x59cm, 2019).

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