A QUESTÃO DA SUBJETIVIDADE EM DELEUZE
- cleverfernandes196
- 15 de ago. de 2021
- 5 min de leitura

Tema controvertido, pois Deleuze é reconhecido com um filósofo pós-sujeito e de repente falar desubjetividade no pensamento deleuziano parece coisa estranha, entretanto, este texto se propõe apenas sinalizar como esse tema se faz presente no seu primeiro livro, escrito em 1953, intitulado Empirismo e subjetividade, obra dedicada ao pensador inglês David Hume.
Nela temos uma marca do processo de subjetivação deleuziano. Deleuze escreveu: “E, olhando bem, isso é tão só uma maneira de dizer. O sujeito se constitui no dado”. O sujeito se constitui no dado, o pensador não escreve que o sujeito está dado, mas que se constitui nos dados da experiência empírica. O sujeito se concebe, se produz, se funda, se compõe, se forma nos embates, nos encontros, nos acontecimentos naturais ou sociais. Isso é muito importante, pois essa consideração do sujeito que se constitui nos dados das experiências rompe com a noção de uma unidade evidente atribuída ao sujeito, comum à filosofia da identidade, ou, como Deleuze gostava de atribuir, filosofia da representação, filosofia do mesmo, isto é, nas filosofias que trabalham com a noção de um ser prévio, já dado, permanente, que tem uma essência. Deleuze, como filósofo da diferença, rompe com essa visão essencialista, uma vez que uma das marcas daquilo que denominamos de filosofia da diferença é exatamente não se perguntar: “o que é isso?”, pois tal pergunta nos conduziria a pensar em um essência, em uma ideia depurada, e com isso “desaguaríamos” no mar da tradição filosófica inaugurada por Platão, que busca no seu esforço investigativo definir as essências das coisas, pela via da identidade. Assim, não se faz a pergunta o que é a subjetividade para Deleuze, ele substituiu a questão o que é?, pelas questões operacionais: Como? Quem? Quanto? Qual é?. Abandonando a busca pelas ideias no mundo das ideias, pela compreensão do como elas funcionam, saindo do campo transcendental e se lançando no campo da imanência, da multiplicidade, das singularidades, por isso nos perguntamos como acontece o processo de produção da subjetividade? O que para o pensador francês se dá num movimento e, por isso, ele concebe que o sujeito se produz num devir permanente, num fluxo de intensidades, na dinâmica dos múltiplos encontros vividos e sofridos. São nos diferentes encontros vividos, nas múltiplas experiências, que a subjetividade vai sendo forjada, pois somos provocados e exercitamos nossas potências para diferenciar-nos de nós mesmos e dos outros que nos cercam. Evidente, e sabemos, que a intensidade dos encontros neste processo de subjetivação não é a mesma para todos. Vivemos diferentes encontros, alguns são suaves e, devido a sua leveza, podem passar praticamente despercebidos, mas, mesmo assim, deixam suas marcas indeléveis nos nossos corpos; outros são fortes, marcantes e até mesmo violentos, deixando suas marcas de forma mais profundas. Encontros suaves, fortes, violentos, todos produzem suas marcas, dependendo dos efeitos produzidos, de tempos em tempos, por causa da memória involuntária, somos obrigados a revistar aqueles encontros e, de uma certa forma, somos praticamente forçados a produzir sentido aquelas experiências que emergem ao acaso e que, sem consulta, sem pedido prévio ou autorização, desorganizam um modo de viver até então conhecido. Os encontros, ou apenas suas lembranças, nos desterritorializa, nos fazem diferentes... São forças nos atravessando. Assim, a produção da subjetividade para Deleuze se dá no embate de forças que nos forçam a deixar os territórios conhecidos da segurança e nos lança para uma vida nômade, em contínuo movimento. É assim que o sujeito se constitui no dado das experiências, nos acontecimentos da vida. É possível dizer então que partindo deste pressuposto de que a vida acontece num campo complexo de forças em embate, os dados podem ser tomados com os vetores de forças, que afetam, atravessam o sujeito de diferentes maneiras e o desterritorializa, o desorganiza, transformando sua vida. Essas forças como fortes ventos, e brisas suaves, circulam do lado de fora e mantêm entre si uma relação de enfrentamento, de luta e de choque. Se o sujeito se constitui no dado das experiências e os dados são forças que vem de fora produzir o desconforto da mudança, não podemos conceber o sujeito como coisa dada, pronta e acabada. A força do lado de fora tem participação significativa na produção da subjetividade. No livro que Deleuze escreveu sobre Foucault, ele nos diz que “o lado de fora diz respeito à força: se a força está sempre em relação com outras forças, as forças remetem necessariamente a um lado de fora irredutível, que não tem mais sequer forma, feito de distâncias indecomponíveis através das quais uma força age sobre a outra ou recebe da outra”, num contínuo processo de composição e decomposição. Para Deleuze somos constituídos por várias forças em ação: força de imaginar, de recordar, de conceber, de querer, de desejar, de sonhar. Essas forças que compõem o processo de subjetividade têm potências de ação variáveis.Vivi-se tudo “como processo de produção. Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro e acopla as máquinas”. Somos máquinas desejantes. Por isso, na perspectiva deleuziana, a produção da subjetividade é uma processualidade, isto é, é movimento, é devir permanente, é processo, não se estabiliza de maneira definitiva, não se cristaliza numa identidade. É sempre diferença, é sempre diferente. É metamorfose. “Só há sujeito fixo pela repressão”, sentencia Deleuze. Nesse ponto singular da filosofia de Deleuze, podemos afirmar que a produção da subjetividade envolve um movimento que não conhece sossego, pois o sujeito não está dado de uma vez por todas. Ele é devir. A constituição territorial é sempre composição provisória de forças num equilíbrio precário, que entrará em movimento a partir do momento que sofrer a ação de uma nova força externa, que a desterritorializará. Portanto, para finalizar, a maneira como Deleuze pensa a produção da subjetividade remete a uma aventura que é recorrentemente colocada nessa constituição de si e nas variações produzidas pelos encontros intensivos com os outros. A composição de si, a subjetivação, envolve um processo vivo e, portanto, provisório, uma vez que o sujeito está sempre vulnerável à ação de novas forças e dos acontecimentos. Como escreveu Daniel Lins: a subjetividade como “um modo de existência manifesta um composto de formas e forças delineando uma maneira de enfrentar a vida. O acesso a outros modos de existir traz a possibilidade de criar, por deslocamento, por resistência, novas relações, novos devires. Essa composição de forças com o acaso, com o inusitado, consiste na arte de se contagiar”, tornando-se aquilo que se é. Voltando ao princípio, no livro sobre Hume, Deleuze insiste na afirmação do sujeito que se constitui no dado afirmando: “se o sujeito se constitui no dado, somente há, com efeito, sujeito prático”, isso é, sujeito de ação, o processo de produção da subjetividade para Deleuze é uma prática. É devir.

Comments