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VIDA, REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E QUADRINHOS

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Por Jorge Luiz Feitoza Machado*

Nunca um velho clichê fez tanto sentido quanto a conhecida sentença “a vida é feita de momentos”, poderíamos dizer, de recortes. Como numa cadeia de sequências, em preto e branco ou em coloridos estilizados, ou tal como roteiros bem alinhavados e concatenados, muitas vidas, bem como os sentidos empregados às experiências individuais ou coletivas são alegorias concretas do real vivido, como as que dão contornos às histórias em quadrinhos. Para além da dimensão alegórica presente em gêneros de quadrinhos, como de super-heróis ou em histórias com narrativas de ficção, fato é que, já faz algum tempo, as populares HQ’S não devem ser encaradas como artefatos para mero entretenimento. Trata-se de um tipo de produção que possui certa tradição, com origens que remetem ao fim do século XIX, e que foi notabilizada pelo consumo de massa, e, por essa razão, sendo vista como arte marginalizada ou menos nobre que outras formas de arte, como o cinema. Todavia, são nas histórias em quadrinhos que nos deparamos com um tipo de representação peculiar da “realidade”, um modo sui generis de falar sobre a(s) sociedade(s). Os quadrinhos podem ser lidos como artefatos de representações e sentidos, reunindo determinados encadeamentos que abarcam experiências vividas socialmente, das mais singelas, como a descoberta da amizade, das relações amorosas e familiares, a temáticas mais polêmicas, como relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, histórias baseadas em relatos de experiências traumáticas em campos de concentração, alegorias ficcionais ou narrativas com documentação histórica sobre contextos de regimes de exceção, entre outras inspirações para a construção de roteiros habilmente articulados.

Os traços e desenhos em preto e branco e a representação de personagens apresentados com a aparência de ratos conferem o tom de tensão e angústia à narrativa biográfica sobre experiências de prisioneiros poloneses em campos de concentração implantados durante o regime nazista. Para além da experiência traumática em si, o quadrinho “Maus”, de Art Spiegelman, reatualiza memórias familiares, de relacionamentos afetivos, vida no trabalho e amizades relatadas pelo avô do autor deste quadrinho. Essa é uma narrativa baseada principalmente em elementos da memória de um informante, alguém de carne e osso que vivenciou a cruel realidade de uma experiência que ultrapassa os limites da humanidade.

Uma história contrastante a “Maus” está presente no visual completamente colorido e nas expressões dos personagens do mangá “o marido do meu irmão”. É uma produção que notabiliza a experiência de minorias que se identificam com a causa homoafetiva e seus desafios e descobertas cotidianas. Num contexto marcado pelo signo da intolerância das relações humanas, a produção japonesa é uma história que fala sobre (auto) aceitação, empatia e luta pelo direito de ser quem se é. “O Marido do meu irmão” se trata de uma história sensível e cativante.

A narrativa ficcional e alegórica configura o rótulo de clássico para “O Eternauta”, talvez o quadrinho mais famoso produzido na Argentina. Trata-se de uma saga pela sobrevivência humana imersa em um cenário de catástrofe cuja causa é desconhecida. O tom realista dos desenhos, visualizados em preto e branco, oferece a percepção de derradeiros momentos da existência dos personagens que precisam evitar o contato com uma nuvem mortal de flocos de neve suspensos no ar de Buenos Aires. A partir deste plano de fundo, a trama articulada por Héctor G. Oesterheld se desenvolve segundo um roteiro maduro e instigante, repleto de aventura, que se inspira na reinvenção do mito de Robinson Crusoé.

Os três exemplos são em si representações singulares de histórias que poderiam ser a minha ou sua história pessoal, ou ainda poderia ser, e, de fato é, o enredo da vida concreta de muita gente, em diferentes lugares. A sequência de momentos da vida de indivíduos ou grupos sociais em sua singularidade de experiências tomam contornos em forma de representações imagéticas e alegóricas que os quadrinhos comportam.

Temos então nesse artefato conhecido como nona arte não somente a potencialidade criativa das imagens ou ilustrações, mas, a combinação de roteiros que funcionam como filtros de percepção do real vivido, transposto em representações do mundo social através da mídia dos quadrinhos. Relatos de um sobrevivente polonês que viveu um momento de sua vida em campos de concentração durante a segunda guerra; lembranças de uma garota que conviveu com seu irmão e seu companheiro numa relação homoafetiva na sociedade japonesa, ou as aventuras de um grupo de amigos pela sobrevivência diante do desconhecido num contexto de ditadura na Argentina, se consagram como reflexões plurais diante de percepções do real em forma de arte em quadrinhos.

O Eternauta com textos de Héctor G. Oesterheld e desenhos de Francisco Solano López foi publicada pela Martins Fontes, em 2011, tendo dois outros volumes publicados, novamente pela Martins fontes, em 2013 e pela Comix Zone, em 2019. Segundo o próprio Oesterheld, o quadrinho, publicado numa revista semanal, foi sendo construído semana a semana; o que tínhamos era uma ideia geral, mas ela foi constantemente alterada pela realidade concreta de cada novo número. Para o autor, o verdadeiro herói de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano. Isso reflete, embora sem personificação, seu sentimento íntimo: o único herói válido é o herói “em grupo”, nunca o herói individual, o herói solitário (informações extraídas dos paratextos de “O Eternauta).

“Maus: a história de um sobrevivente” tem roteiro e ilustrações de Art Spiegelman, o autor do quadrinho, sendo publicada pela Companhia das Letras, em 2009. Segundo críticas especializadas, Maus é descrita como um relato intensamente pessoal da sobrevivência de uma família, de fugas quase impossíveis e encarceramentos, que lida de forma artística com experiências e emoções que muitos fariam de tudo para esquecer. Um relato que mostra como, quando a vida chega ao nível da mera subsistência, confiança e traição assumem dimensões sem precedentes. Maus é uma publicação vencedora do consagrado prêmio pulitzer (Informações extraídas dos paratextos de Maus).

“O marido do meu irmão”, título adaptado para o português, é um Mangá japonês publicado pela editora Panini, em 2019, tendo o início do seu lançamento em março daquele ano. Lançada originalmente em 2014, na revista Manga Action, “Otouto no Otto” (O marido do meu irmão) é uma publicação Seinen (voltada para um público adulto), do autor Gengoroh Tagame. É uma das muitas obras do autor que trabalha com Mangás desde 1982, tendo iniciado sua carreira na literatura gay em 1994. Além da abordagem LGBT, tomada como foco, o Mangá também explora questões culturais presentes na sociedade japonesa. Ainda antes de ser lançado no Brasil, “Otouto no Otto” chegou a ganhar o prêmio por excelência no 19º Japan Media Arts Festival, em 2015 (Informações extraídas da resenha “Conheça o Mangá Otouto no Otto”).


* Jorge Luiz Machado é professor de Sociologia, no curso de Licenciatura em Ciências Humanas na UFMA, formado em História, Mestre e Doutor em Ciências Sociais e entusiasmado leitor de quadrinhos.

 
 
 

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