Habitações da memória: por uma navegação nas águas-lembranças da música e da poesia
- filosofiaevidablog
- May 30, 2021
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Updated: Jun 24, 2021
Por Larissa Emanuele de Oliveira

Na música Cabelo no pente do cantor e compositor Alceu Valença, a voz poética comenta estar pisando pelas ruas do passado com o seu “pé caminhador”. O passeio ao passado lhe confere certas calosidades, que seriam as lembranças desagradáveis, provavelmente ruins. Porém, dançar xote lhe permite tropeçar com harmonia no que há de mais belo no mundo, a música: “dançando o xote, tropecei com harmonia/ Na melodia de pisar na fulo”.
Enquanto a voz poética de Alceu Valença “tropeça”, caminhando entre o presente e o passado, harmoniosamente na música, a voz poética de Conceição Evaristo desliza pelas águas de uma memória que contempla presente e passado, e admite a necessidade de recordar a si mesmo nas deslizantes águas da poesia:
Recordar é preciso
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.
O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.
Uma paixão profunda é a boia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas. (EVARISTO, 2017, p. 11)
A partir do momento em que as “águas-lembranças” emergem em seu olhar, de modo a transbordar em lágrimas, a voz poética de Conceição Evaristo navega em um mar particular, aquele no qual as suas lembranças estão “temperadas”, salgando-lhe o rosto, as suas emoções, e o gosto, a forma como as lembranças são vivenciadas.
A voz poética afirma ser eternamente náufraga: “Sou eternamente náufraga”, uma vez que está sempre a afogar-se em suas lembranças. Contudo, a paixão de saber que a poesia pode ser a sua bóia, permite a compreensão de que há um mistério para além das águas-lembranças: “Sei que o mistério subsiste além das águas”. Tal mistério encontra-se no silêncio que a poesia penetra, quando se inscreve no corpo de quem se atreve a “tropeçar” na palavra:
Da calma e do silêncio
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, o osso, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
[...]
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
Há mundos submersos,
Que só o silêncio
Da poesia penetra. (EVARISTO, 2017, p. 123-4)
A primeira estrofe do poema Da calma e do silêncio mostra a necessidade de “morder a palavra” vagarosamente, ou seja, passear pelos verbos, escolhê-los com atenção, verificar “a pele, o osso, o tutano” para assim ter consciência de que o sentimento de um si atravessará cada verso.
Desse modo, a palavra se inscreve no corpo, quando a voz poética especula abrandar a sua marcha na segunda estrofe, desejando apenas o silêncio de uma “aparente inércia”, que não se configura como ausência de movimento, mas de pés que diminuem a marcha da vida objetivando um momento significativo de reflexão. Assim, a viagem da poesia ocorre pelo silêncio, que estabelece uma mediação entre a voz poética, a palavra e o corpo.
Os poemas comentados fazem parte da obra Poemas da recordação e outros movimentos, de Conceição Evaristo. A obra dispõe de sessenta e seis poemas, nos quais uma voz poética apresenta a visita da poesia; o passar do tempo que atravessa um eu-mulher; a vida conforme um rosário de salmos, axés e aleluias; a constituição da “mineiridade”, entre outros poemas. Em Poemas da recordação, a memória é âncora e ao mesmo tempo a roda do leme da embarcação-palavra da escritora mineira.
Que é a memória? Se ela habita a música, a poesia e o corpo, também pode ser vista como um espaço. Halbwachs (1990, p. 39) afirma que a memória é uma faculdade propriamente individual que pode retomar os estados pelos quais passou antes. Entende-se que esses estados seriam presente, passado e futuro. E a lembrança se constitui como a reconstrução do passado com a ajuda de dados do presente.
Esse processo de reconstrução do passado admite a possibilidade de criação de imagens sobre o mesmo. A propósito, convém ressaltar a metáfora do “pé caminhador”, muito oportuna para refletir sobre “O profissional da memória”, poema de João Cabral de Melo Neto, que faz parte da obra Museu de tudo, como também de A literatura como turismo, do mesmo autor.
João Cabral de Melo Neto, poeta e diplomata brasileiro, distanciava-se do lirismo, a fim de pensar uma poesia consciente, visual e de rigor estético próprio. Em uma de suas viagens diplomáticas, João Cabral ficou encantado por Sevilha, uma cidade da Espanha, de modo que sua voz poética buscou “injetar lembranças” para que quando não estivesse na cidade pudesse voltar a habitá-la:
O PROFISSIONAL DA MEMÓRIA
Passeando presente dela
pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças,como vacina,
para quando fosse dali
poder voltar a habitá-las,
uma e outras,e duplamente,
a mulher,ruas e praças.
Assim,foi entretecendo
entre ela e Sevilha fios
de memória,para tê-las
num só e ambíguo tecido;
foi-se injetando a presença
a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada.
[...] (MELO NETO, 1976, p. 69-70)
Retomando as lembranças de seu passeio pelas ruas de Sevilha, a voz poética cria imagens da mulher, das ruas, praças, casas, vielas e fachadas em seus versos. Ao mesmo tempo em que “injeta lembranças como vacina” no poema, a voz poética “injeta lembranças” em si mesmo, para que consiga recuperar em sua memória a experiência de ter vivenciado Sevilha através dos elementos do lugar.
A visão sobre Sevilha, a qual a voz poética cria, desenvolve “fios de memória”, a exemplo do segundo verso da terceira estrofe. Esses fios de memória entrecruzam o poema e a lembrança do poeta. Entre ambos encontra-se uma cidade metafórica que se insinua no poema da cidade empírica.
Como se disse, por meio da memória, Alceu Valença “tropeça” na música, Conceição Evaristo “desliza” em águas-lembranças da poesia e João Cabral de Melo Neto “habita” o poema, pois as suas lembranças o encaminham para uma experiência visual e perceptiva do espaço.
Tomando de empréstimo os versos da cantora Maria Bethânia em sua canção “memória das águas”: “Queria que a vida fosse/ Essas águas misturadas/ Eu que já fui afluente/ Das águas da fantasia/ Hoje molho mansamente/ As margens da poesia”; recomenda-se perceber os “pés caminhadores”, as “águas-lembranças” e as “imagens espaciais”, porque é necessário saber experienciar a água assim como a margem. A vida demanda todas “essas águas misturadas”.
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ALCEU VALENÇA. Cabelo no pente. Letra completa disponível em: https://www.letras.mus.br/alceu-valenca/188410/.
MARIA BETHANIA. Memória das águas. Letra completa disponível em: https://www.letras.mus.br/maria-bethania/867489/.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Ed. Revista dos Tribunais LTD, 1990.
Melo Neto, João Cabral de. Museu de tudo: poesia, 1966 -1974. 2. Ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976.
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