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  • cleverfernandes196

VIDA EM SOCIEDADE OU TEATRO DE VAMPIROS

Nos primeiros versos da música “O teatro dos vampiros” e também na quarta estrofe da canção “Índios” Renato Russo faz importantes constatações sobre a vida. Nessas canções ele escreveu coisas semelhantes, uma ideia acompanhou as duas composições do cancioneiro de Brasília. Veja o que ele escreveu:

“Este é o nosso mundo

O que é demais nunca é o bastante

A primeira vez é sempre a última chance

Ninguém vê onde chegamos

Os assassinos estão livres, nós não estamos“

“Quem me dera, ao menos uma vez,

Provar que quem tem mais do que precisa ter

Quase sempre se convence que não tem o bastante

E fala demais por não ter nada a dizer“

Temos nessas duas canções uma constatação humana demasiada humana, nunca estamos satisfeitos… Nada nos basta, o “demais” não existe, pois o tempo todo conseguimos nos convencer que nunca temos o suficiente. “O que é demais nunca é o bastante“. Ao contrário da visão comum, isso não é só do ponto de vista das riquezas, do universo da economia, mas também das demandas afetivas nas relações humanas. A maioria das pessoas nas relações não acham que recebem atenção e carinho suficiente, querem sempre mais. Como máquinas desejantes nossa sede parece insaciável. Não existe o “demais”. Evidente que essa idéia tem maior visibilidade no mundo econômico, principalmente quando somos bombardeados com noticiários revelando a ganância de políticos e empresários envolvidos em desvios de milhões de recursos públicos, caso corriqueiro no Brasil. Para mim, a corrupção está ligada também a essa lógica das canções do Renato Russo. O “demais” nunca é o bastante, a ganância não tem freio, sempre querem mais, pois estão convencidos que ainda precisam de mais riquezas do que já possui. Porém, existe outra visão desta compulsão humana, algumas pessoas não se contentam, não estão satisfeitas com o que conhecem e sempre acham que sabem pouco ou quase nada frente ao universo. Para os sedentos por conhecimento o que já leram é sempre insuficiente. Todavia, neste quesito normalmente as pessoas não consideram esta sede de conhecimento como coisa ruim, muito pelo contrário, existe uma visão positiva e otimista nessa busca contínua e frenética pelo saber. A postura do investigador atento que busca pesquisar sempre e reconhece, como Isaac Newton, que o que se sabe é mínimo, uma gota, frente ao oceano que se desconhece é socialmente valorizada, pelo menos do ponto de vista verbal. Porém, assim como nem todos desejam toda riqueza do mundo, também nem todo pesquisador tem essa postura inquietante de desejar conhecer sempre mais e muito menos essa postura humilde de reconhecimento da própria ignorância, pois para o arrogante a máxima socrática: “Só sei que nada sei“, não tem validade. Ele tem certeza do seu esclarecimento, se orgulha da gota de conhecimento que possui e os outros para ele são imbecis úteis ou apenas um pouco mais esclarecidos (porém não o bastante em sua visão prepotente). Entretanto, não tenho dúvida que a busca contínua pelo conhecimento é o lado luminoso da insatisfação humana, precisamos reconhecer que nunca sabemos tudo e estamos sempre aprendendo com os outros.

No Teatro dos Vampiros temos outra dura constatação, tudo na vida acontece uma única vez. “A primeira vez é sempre a última chance“. Nada se repete na vida, pois tudo que vivemos tem o selo da exclusividade. Essa constatação é assustadora e, por isso, Milan Kundera, em seu livro “A insustentável leveza do ser”:

Primeiro questiona:

“Mas o que vale a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É o que faz com que a vida pareça sempre um “croqui”. Mas nem mesmo ”croqui” é a palavra certa, porque um croqui é sempre o esboço de alguma coisa, a preparação de um quadro, enquanto o croqui que a nossa vida é, não é croqui de nada, é um esboço sem quadro”.

E, depois, sentencia:

“A vida humana só acontece uma vez e não poderemos jamais verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez”.

Todos os momentos da vida são vividos uma única vez. Não se tem tempo de ensaiar ou escrever um rascunho, não existe meio de verificar qual a melhor saída dos problemas concretos da vida e, ao mesmo tempo, não se tem termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Se a vida fosse um teatro seria sem roteiro e sem ensaio, e os atores estariam entrando em cena sem nunca terem ensaiado. Neste teatro da vida real a surpresa não é só para o espectador mas, também, para o ator que jamais passou os olhos na cena, pois no teatro da existência não temos a chance de ensaiar, somos lançadas no palco sem termos ideia do que acontecerá, num tipo de teatro do improviso. A cada instante temos que responder aos acontecimentos inesperados da vida. A vida é acontecimento, e ele que provoca a intensidade no e do viver. Cada instante vivido não tem volta, por isso temos que ter atenção o tempo todo para desfrutarmos o melhor de cada instante. Eles são decisivos, nossas vidas são transformadas para o bem ou para o mal num único instante, pois eles são momentos de impacto. Impacto esse dos múltiplos encontros que vivemos ao longo da existência. A vida é encontro, porém nem todos os encontros nos são favoráveis, uns nos convém outros não. Temos encontros que nos alegram e aumentam nossa potência de agir, outros nos produz tristezas e por isso diminui nossa potência de agir, nos ensinou Spinoza em sua Ética. Outra constatação do Renato Russo está no título da canção Teatro dos Vampiros que parece querer sinalizar que na vida social estamos vivendo de fato num teatro de vampiros. São várias as relações vampirescas que podemos ter ao longo da vida. Toda relação movida por algum interesse é um tipo de relação vampiresca. Aquelas amizades que nos convencem que devemos dar tudo por elas… Amizades que pensamos serem boas como aquelas denunciada na primeira estrofe da música Índios que diz:

“Quem me dera, ao menos uma vez,

Ter de volta todo o ouro que entreguei

A quem conseguiu me convencer

Que era prova de amizade

Se alguém levasse embora até o que eu não tinha“.

Neste tipo de relação deixamos os vampiros sugar todo nosso sangue, entregamos nosso pescoço sem receio e sem medo, afinal isso é prova de amizade. Estamos vulneráveis a toda sorte de relações, e os oportunistas aproveitam essa situação de vulnerabilidade humana. Não estamos livres, os vampiros estão livres e procurando situações favoráveis para pegar pessoas distraídas. É neste sentido que compreendo este verso do Renato Russo: “Os assassinos estão livres, nós não estamos“. O problema é que os vampiros assassinos entram em nossas vidas disfarçados: primeiro compartilhamos com eles momentos agradáveis depois percebemos a ação parasitária destes “doces vampiros”. Entretanto, essas relações produzem um tipo de dependência mórbida tão intensa e forte que não conseguimos nos desvencilhar facilmente.  Rita Lee cantou divinamente essa trágica relação na música Doce Vampiro:

“Venha me beijar Meu doce vampiro […] Na luz do luar […] Venha sugar o calor De dentro do meu sangue Vermelho Tão vivo tão eterno Veneno Que mata sua sede Que me bebe quente Como um licor Brindando a morte e fazendo amor Meu doce vampiro […] Na luz do luar […] Me acostumei com você Sempre reclamando da vida Me ferindo, me curando A ferida Mas nada disso importa Vou abrir a porta Pra você entrar Beija minha boca Até me matar”.

Difícil quebrar este ciclo vicioso, essa mórbida relação, a canção da Rita Lee é reveladora dessa dificuldade para romper tal dinâmica, ela canta “Me acostumei com você; Sempre reclamando da vida; Me ferindo, me curando; A ferida; Mas nada disso importa; Vou abrir a porta”, a constatação da atitude vampiresca não impede de abrir a porta para o retorno do Vampiro. Agora adjetivado “meu doce vampiro”. A dependência afetiva dificulta a separação. Entretanto, quando a mascara cai definitivamente a pessoa sofre, pois neste instante de dura revelação as alegrias de ontem convertem-se em aflições difíceis de suportar. Somos impelidos, provocados e pressionados a tomar uma atitude e num instante de coragem, determinação e lucidez conseguimos eliminar este vampiro de nossas vida, porém mesmo sendo a coisa certa a fazer, pois se não o fizermos teremos a existência sugada e pereceremos, a atitude de ruptura da relação produz intensa dor. Além disso, essa experiência produz uma densa neblina na vida e por causa dela temos dificuldade de enxergar os verdadeiros amigos, pois na vida social não existe apenas vampiros também temos a sorte de encontrar em alguns momentos pessoas que fazem da nossa vida algo sublime.

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