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  • cleverfernandes196

VIDA, CASA E ENCONTROS

Quando se observa atentamente a situação existencial na qual o homem é obrigado a viver, suas transformações e suas relações, ao longo do horizonte, não se pode deixar de ficar comovido com a quantidade de fatalidade, calamidade e adversidade a que ele está submetido (ERASMO DE ROTTERDAM,2001,p. 43): seja de ordem natural, a fúria da natureza (terremoto, maremoto, furacão, entre outros) ou de ordem social, a fúria humana (assassinato, violência sexual, agressão física ou verbal). A partir dessa constatação assustadora, poderíamos pensar que a vida é insuportável, pois, ela está fadada ao drama e a tragédia. É impossível não reconhecer que a condição humana é também marcada pelo drama e pela tragédia, e, por causa disso, a vertigem é sua companhia. Porém, a situação humana é complexa, quando tomamos consciência da realidade percebemos que oscilamos o tempo todo entre dois extremos: não só de dramas e tragédias se vive a vida, mas também de aventuras e alegrias, pois a estupidez e a distração apenas amenizam o sofrimento dessa oscilação da e na vida. Algumas pessoas até acreditam que na ignorância a pessoa é mais feliz, mas isso me parece tolice. O certo é que a ritmicidade da existência acontece sempre nessa roda-viva, ora estamos em alta, ora em baixa, ninguém vive apenas na parte superior dela. Ela gira independente de nossa vontade, por isso “tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, a roda-viva parece que vai nos esmagar, em outros momentos, sentimos a leveza da vida. Mas, o fato é que mesmo não tendo consciência dessa dinâmica existencial,essa oscilação começa logo no nascimento, e entramos nessa roda-viva: prematuro, indefeso e frágil, numa situação nada favorável. Como afirma Jean-Jacques Rousseau: “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dados pela educação” (2004, p.9). De fato, o homem nasce em uma condição frágil, e essa condição débil lhe impõe a necessidade de outro para alimentá-lo, protegê-lo, afagá-lo e, poderia dizer, para complementá-lo em sua ‘eterna’ dependência. Sem estes cuidados iniciais não sobreviveríamos. Além disso, este contato é responsável pela tomada de consciência de nossa humanidade. Não tenho dúvida, o homem se completa nas múltiplas relações que são submetidas a partir do nascimento, os ambientes sociais e naturais, lenta e progressivamente, forjam um novo ser humano. Na verdade, Judith Viorst considera que, “não podemos nos tornar seres humanos completos – [ou seja]… é difícil tornar-se um ser humano – sem o apoio dessa primeira ligação”(2005, p. 27) familiar.  E esta relação familiar acontece, quase sempre, em um espaço específico: a casa. Podemos afirmar que a casa e as relações familiares são determinantes na constituição de nossa humanidade. A casa “é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo”(BACHELARD, 2008, p.24), ela constitui o mundo mais próximo, é o mundo circundante, onde habitamos e somos forjados no cotidiano. De acordo com Gaston Bachelard,“na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser ‘jogado no mundo’, como o professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, nos nossos devaneios, ela é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado este fato, esse simples fato, na medida em que ele é um valor, um grande valor ao qual votamos nos nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa”. (2008, p.26).

Com essa visão bachelardiana estamos no lado oposto daquele retrato sombrio de Erasmo de Rotterdam, pois, apesar da fragilidade, Bachelard salienta, que a vida começa bem, protegida e agasalhada no seio de uma casa. Essa posição é uma crítica dirigida diretamente as metafísicas apressadas tipo a do pensador alemão Martin Heidegger, para quem o homem é um ser-no-mundo. Então, antes de ser um ser lançado no mundo, o homem é um ser acolhido na casa. A casa local de proteção, lugar que minimiza a vertigem da condição humana, nosso primeiro lugar no mundo, depois, com o tempo o mundo torna-se nossa casa. Como aponta Buber, existe uma dinâmica interessante nessa íntima articulação entre homem e o mundo, ele afirma que podemos distinguir na história humana épocas em que o homem tem aposentos e épocas que não tem, assim em alguns momentos“el hombre vive em el mundo como em su casa, em las otras el mundo es la intempérie, y hasta le faltan a veces cuatro estacas para lenvantar una tiende de campaña.”(BUBER, 1967, p.24-5).Assim, em alguns momentos o ser humano se sente em casa, mesmo quando parece estar “jogado no mundo”, isto é, ele vive no mundo como num lar, porém em outros se sente sem lugar (um utopiano), vive no mundo exposto à intempérie e nem consegue armar uma tenda. Porém, independente da situação, a casa ou atenda é o espaço de abrigo, o porto seguro do homem, e é nele que iniciamos nossa vida. A vida começa no regaço do lar a partir dos primeiros encontros domésticos. Vida é encontro, no ensina Buber em seu livro clássico “Eu e Tu”. Assim, a vida em sua fragilidade inicial tem na casa e nos encontros seus pontos de apoio, isto é, podemos dizer,neles conseguimos ou temos uma forma ou uma tentativa de “eliminar aquela desorientadora e aterrorizante fragilidade da existência humana”(BAUMAN, 2005, p.115-6). A vida fica protegida na casa e se fortalece nos encontros. Evidente que estou falando dentro de condições normais de temperatura e pressão, a casa e as relações domesticas são responsáveis pelo cuidado corporal e mental do ser humano frágil, logo após o nascimento, porém sabemos que em casos excepcionais algumas pessoas podem sofrer as maiores atrocidades dentro deste espaço, que deveria ser de aconchego e proteção, mas violência doméstica não é regra, é exceção. Por isso, podemos reconhecer, sem sombra de dúvida, que sem a casa e sem estes primeiros relacionamentos o ser humano não existiria como pessoa, não se constituiria como ser integral. Nossa formação se dá a partir desses encontros que inicia no seio doméstico. Dentro de casa e depois lançado no mundo somos produtos dos múltiplos encontros com os outros. A questão é que o encontro é a marca da condição humana, para o bem ou para o mal, somos marcados pelos encontros que vivemos e sofremos. Não existe o ser humano sem o encontro.Na história do pensamento temos pelo menos três distintas filosofias do encontro: Os estoicos e os epicuristas, nas origens da filosofia, construíram a primeira versão da filosofia do encontro; no alvorecer da modernidade, Baruch de Espinosa apresenta outra possibilidade; e, no principio do século XX, temos a terceira e a mais bem acabada filosofia do encontro nas obras do austríaco Martin Buber. Todas mostram que não existe vida sem encontro, assim podemos concluir que a VIDA ACONTECE NA CASA E NOS ENCONTROS.

Referências:

ERASMO DE ROTTERDAM. O elogia da loucura, 2001.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação, 2004.

VIORST, J. Perdas necessárias, 2005.

BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço, 2008.

BUBER, Martin. Qué es el hombre?, 1967.


BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas, 2005.

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