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  • cleverfernandes196

A SOLIDÃO NÃO É UMA ILHA DESERTA

As pessoas afetadas pela tristeza verbalizam e pensam, ou, na verdade, pensam e verbalizam: tudo que o humano tem no mundo é a própria companhia, nasce só, vive só e, consequentemente, morre sozinho. Viver é habitar uma ilha deserta, e para elas é assim que se resume a vida: uma grande aventura solitária. Sufocada de tristeza, elas ainda sentenciam: cada um deve exercitar a capacidade de sobreviver reconhecendo e entendendo que o ser humano é solitário. Nesta perspectiva, a solidão é uma ilha deserta. Porém, tal ponto de vista, reducionista e pessimista, esquece que nossa existência só é possível porque da fecundação à cova estamos rodeados por outras pessoas. Somos seres dependentes e vulneráveis. Não somos autossuficientes e nem somos frutos de geração espontânea, não brotamos como cogumelos num tronco de árvore apodrecida. Nossa geração acontece num ato a dois, só nascemos porque no ato de fecundação fomos acolhidos num útero de uma mulher, nossa mãe biológica, nossa primeira habitação. Essa relação entre mãe e filha(o) é a mais radical experiência humana. Naquele tempo de gestação efetivamente temos uma plena unidade, não estamos sozinhos nenhum instante, estamos acompanhados a cada batida do coração. Compartilhamos tudo, tudo que ela come ou sente, sentimos e comemos. Evidente, você pode indagar que cada gestação é singular, que quando somos despejados dessa casa primordial, quando somos lançados no mundo acontece de ficarmos sozinhos. Perdemos a unidade umbilical com nossa mãe, mas isso não significa um isolamento. Além disso existe uma singularidade no nascer que acompanhará nossa existência, entretanto, isso não confirma ou pode se reduzir a sentença das pessoas tristes que afirmam que a vida é uma ilha deserta, como se vivêssemos sozinhos no mundo. Não somos lançados no mundo sem nenhum cuidado, pois se após o nascimento fôssemos jogados à própria sorte, provavelmente não estaríamos aqui. A probabilidade de um recém-nascido sobreviver sozinho é praticamente nula. Nossa vida só é possível porque alguém nos protegeu, cuidou, alimentou, em síntese nos educou. Como afirma Jean-Jacques Rousseau: “Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dados pela educação” . Tal condição débil impõe ao ser humano a necessidade de um outro para cuidar dele, alimentá-lo, protegê-lo, afagá-lo e, poderíamos dizer, para completá-lo em sua ‘eterna’ dependência. Assim, podemos dizer, não nascemos homens ou mulheres, nos tornamos. Somos forjados  nas múltiplas relações que somos submetidos a partir do nascimento, devido a sua carência. Estas relações nos ambientes: familiar, social e natural, lenta e progressivamente, forjam um novo ser humano. Na verdade, Judith Viorst considera que, “não podemos nos tornar seres humanos completos – [ou seja]… é difícil tornar-se um ser humano – sem o apoio dessa primeira ligação” familiar. E esta relação familiar acontece, quase sempre, em um espaço: a casa. Ela “é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo” . De acordo com Gaston Bachelard, “na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “jogado no mundo”, como o professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, nos nossos devaneios, ela é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado este fato, esse simples fato, na medida em que ele é um valor, um grande valor ao qual voltamos nos nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa”. Por isso, ficar em casa tem o sentido de ficar seguro, pois ela é o local de proteção que minimiza a vertigem da condição humana. Não fomos lançados sozinhos no mundo, saímos do útero e continuamos protegidos em nosso lar, com o tempo o mundo torna-se nossa casa. Então, a marca da vida não é a solidão, mas o cuidado e a proteção. Naqueles primeiros anos de fragilidade, em tese, temos companhia quase constante. Assim, aquela sentença inicial fruto da afecção triste esconde que nossa vida nunca foi sozinha, já no nascedouro somos envolvidos numa multiplicidade de encontros, atenção e cuidado de outros que viabilizaram seguirmos vivos. Nascemos da generosidade de uma mulher e sobrevivemos porque muitas pessoas cuidaram de nós. Afirmar que a vida se dá sozinho, é simplismo e reducionismo e até um egoísmo, não somos autossuficientes e nem onipotentes. Não estamos sozinhos no mundo. Essa sensação de orfandade, que para Freud é intrínseco a vida, não é real. É ilusória. Somos múltiplos exatamente porque em nós temos as marcas das várias experiências de encontro que acontecem do nascimento até a morte. Essas experiências boas ou ruim ficam em nós, nos acompanham para onde formos. Para o bem ou para o mal somos em partes frutos dessas experiências vividas ou sofridas, como diz Nietzsche, o que não nos mata, nos fortalece. Podemos dizer que somos uma multidão e levamos uma multidão em nosso universo interior, difícil é ficar só no mundo. Não somos uma ilha e, mesmo quando tentamos nos ilhar, nossa ilha deserta está sempre povoada, pois sozinhos somos uma multidão. Desta forma coloco-me radicalmente na direção oposta dos afetados de tristeza. A solidão não é uma ilha deserta. Estamos o tempo todo e todo tempo acompanhados. Além disso, é preciso pensar um pouco essa coisa que chamamos de solidão. No mínimo temos dois tipos de experiências de solidão: a solidão da solidez e a solidão do isolamento. Na primeira, temos a afirmação da existência. É a solidão do reconhecimento, essa solidão é solidária, não porque o solidário não quer solidão, como escreveram os poetas Milton Nascimento e Fernando Brant, mas porque na afirmação da vida, a solidão da solidez reconhece que sua existência está atravessada de muita gente. Com a afirmação da vida entramos numa dinâmica muito importante, pois temos concomitantemente o processo de autoaceitação de si e aceitação do outro como ele é. Essa é a beleza da vida, aceitar e se aceitar na diferença. Somos diferentes, mas todos somos constituídos de uma multiplicidade, assim nós somos diferentes e múltiplos. Ao contrário, a segunda, a solidão do isolamento é a louca tentativa de negar a existência do outro no mundo e, paradoxalmente, o medo de ficar sozinho, já se sentindo em sua tristeza só. Essa solidão é solitária. No isolamento estas pessoas entristecidas vivem um tipo de solidão, que provoca a sensação que nada é sólido, tudo se desmancha, evapora. Num delírio fazem do mundo uma ilha deserta, vivem um tipo de solidão individualizante. Para finalizar, podemos seguir Sêneca que escreveu: “Solidão não é estar só, é estar vazio”. Em outros termos, a sensação de solidão solitária se dá quando nadificamos esse universo múltiplo e diferente que somos, pois quem tem vida de leitura, reflexão, meditação, oração, quem desenha, escreve, pinta, faz jardinagem entre outras atividades nunca se sentirá só. Só quem foge destas atividades edificantes sofrem desse delírio triste de se sentir sozinho. Solidão é tristeza para quem não percebe que nossa ilha deserta esta povoada. A solidão não é uma ilha deserta.

Agradecimento: Quero agradecer ao Nertan Silva-Maia, amigo e colaborador do Blog, pela ilustração intitulado “A solidão não é uma ilha deserta”, produzido na Técnica: Nanquim e aquarela s/ 21×27,5cm.

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