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  • cleverfernandes196

VAIDADE, MODA E VIDA SOCIAL

No reino das vaidades o que vale é permanecer sempre na moda: usar as roupas de marca, falar as frases comuns ditadas pelos meios de comunicação, assistir o último filme em cartaz, ler o livro mais vendido [o que não significa o melhor], ouvir a música do momento, saber as últimas novidades sobre as celebridades, conversar sobre as últimas noticias, etc. Todavia, tal postura fragiliza as pessoas, pois, a moda é flutuante e produz pessoas superficiais e vazias. Mas, tenho minhas dúvidas, será mesmo que é a moda que gera pessoas superficiais e vazias ou as pessoas superficiais e vazias que produzem a moda? Ou será que a vaidade é que produz a moda ou a moda que produz a vaidade? Na verdade não sei, o fato é que a moda parece um tipo de febre social, ela surge e domina a pessoa, depois passa. Também não importa tanto a ordem, se é essa febre social que chega primeiro e depois a vaidade ou seu contrário, a questão é que no reino das vaidades as pessoas são envolvidas facilmente pelos trapaceiros, enganadores e saqueadores, por isso o que importa é saber como resistir ou se imunizar de tal coisa?

O conto A nova roupa do rei, de Hans Cristian Andersen (1805-1875), escritor dinamarquês, revela de forma primorosa esta dinâmica. Ele narra a história de um Rei muito vaidoso que tinha um traje para cada hora do dia. Certo dia em seu palácio chegaram dois trapaceiros anunciando que eram os melhores tecelões do reino, e sabiam tecer panos maravilhosos e com uma extraordinária qualidade, de se tornarem invisíveis para as pessoas que fossem ignorantes. De súbito, o vaidoso monarca pensou em produzir uma nova roupa para assim distinguir entre os seus ministros, os sábios e os estúpidos. E, sem titubear, passou de imediato uma grande quantidade de ouro aos dois para que, sem perda de tempo, iniciassem o trabalho. Os dois malandros ficaram dias e noites fingindo trabalhar em dois teares vazios tecendo o pano da nova roupa do Rei. Algum tempo depois, Sua Majestade resolveu ver com os próprios olhos o tecido produzido pelos dois tecelões trapaceiros. Com receio de nada ver, o rei ordenou que seus ministros o acompanhassem. Assim a comitiva real entrou no ateliê e, imediatamente, dois ministros apontaram para os teares vazios e rapidamente exclamaram: Não é magnífico, majestade! Pois acreditavam que os outros estariam vendo o tecido mágico. O rei dissimulou, sacudindo a cabeça, e afirmou: é de fato, muito belo. Não querendo dizer que nada enxergava. E os outros componentes da comitiva, sem exceção, olhavam, olhavam, mas por mais que quisessem nada conseguiam ver. Mesmo assim, com entusiasmo, todos anunciavam seus elogios: Magnífico, esplêndido, formidável! Eram as exclamações que se ouviam. Naquele momento o que se assistia era um verdadeiro teatro de ilusões, todos colocavam a mascará de sábios, pois não podiam assumir o papel de estúpidos. Com o tecido encantado, que tinha o poder de invisibilidade aos olhos dos mentecaptos, foi produzida a nova roupa do rei, e os elogios ao tecido, que ninguém enxergava, passaram para ela. O monarca tirou sua roupa e recebeu o novo traje dos trapaceiros, que fingiam entregar-lhe, peça por peça. Após se vestir, o vaidoso rei saiu desfilando em uma procissão pela cidade apresentando o novo traje a seus súditos, e nas ruas e janelas todos comentavam: Meu deus, como são lindos os novos trajes do Rei! Como lhe ficam bem! Todos dissimulavam, ocultavam que não estavam vendo coisa alguma, pois do contrário teriam passado por imprestáveis para o cargo que ocupavam ou se revelariam idiotas. Nenhuma roupa do rei havia despertado tanta admiração. De repente uma voz infantil gritou: O REI ESTÁ NU!

Foi necessária a inocência de uma criança para flagrar uma verdade nua, crua e dura que todos estavam vendo e fingiam não ver, pois os ministros, as damas da sociedade e cavalheiros respeitosos, todos súditos do Rei, bajulavam-no em troca da ilusão. A idéia de levar adiante a farsa agradava os diferentes egos, mas quando a criança revelou a verdade todos se aliviaram de não terem que carregar mais o fardo da mentira. Todos se voltaram para o rei nu e o agrediram com olhares e palavras belicosas, como se ele fosse o único culpado de toda aquela encenação. O terrível é perceber que o conto de Andersen apenas revela a dinâmica da vida social, estamos na mesma roda-viva. Os atores desse teatro podem trocar suas máscaras, porém, a trama da vida social é sempre a mesma: a sociedade de enganadores e enganados. Não digo que os enganados são vítimas dos enganadores. Temos uma relação de cumplicidade, ambos participam e gostam do mesmo jogo, só mudam de posição quando as máscaras caem ou são arrancadas.A vida social revela-se como uma grande farsa. Fabricamos a imagem das celebridades e das genialidades porque parece que nosso ego precisa ser alimentado com a ideia que existem pessoas extraordinárias, super-homens, aqueles que são imitados na vida social. Os produtores da moda agem como hospedeiros do vírus que rapidamente transmite a febre social chamada moda. Envaidecidos com tal posição, com o ego inflado, sentem-se semideuses. Thomas Morus afirma que os homens que têm essa paixão vaidosa julgam-se uns pequenos deuses, pois eles se consideram acima de todos. Estes insensatos, como se se distinguissem da multidão pela excelência de seu comportamento ou conhecimento, erguem orgulhosamente a cabeça, imaginando valer um grande preço, pois são idolatrados pela sociedade em estado febril. Além destes insensatos vaidosos, construímos também nossa própria imagem, baseada nos diferentes alicerces da vaidade, e a colocamos à disposição no mercado dos trouxas [nas redes sociais], onde sempre tem pessoas disponíveis e sedentas por novidades e por novos líderes ou ídolos. Nesta feira de ilusões os valores estão trocados e todos aplaudem o novo rei, não importando quem seja e que tipo de roupa esteja vestindo. Quem, além de uma singela criança, iria delatar o fato que estava na cara de todos? A criança, neste caso, simbolizando a pessoa que ainda não foi afetada pela febre, não foi contaminada com o vírus da farsa social. Porém, não é fácil escapar deste vírus, não é fácil conseguir a vacina que pode nos imunizar. Podemos até pensar que a filosofia pode agir como uma vacina, mas será mesmo que ela tem esse poder? Tenho minhas dúvidas. Não basta ler alguns pensadores para escapar da farsa da vida social. Alguns pensam que vão se imunizar lendo o livro do Olavo de Carvalho: “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. Tenho certeza que só essa leitura não imuniza ninguém. Como idiotas, a maioria das pessoas vive um mimetismo, como os ministros do Rei do conto de Andersen, falam, andam, comem, se vestem, sentem, repetindo gestos, consumindo as mesmas coisas que todos consomem, numa dança quase sincronizada. Nietzsche denominou esse comportamento de inteligência de rebanho, onde as pessoas se comportam seguindo a ação da maioria. Romper com essa inteligência de rebanho é algo almejado por algumas pessoas que acreditam que a educação tem o poder imunizador e, por isso, confiam e esperam que os ingressos na vida acadêmica recebam a tal vacina e assim se imunizem do vírus da farsa social. Entretanto, mesmo no espaço social que se considera crítico e assim imune dessa postura da inteligência de rebanho não se está livre da vaidade e do modismo. Nas universidades temos  modismos e vaidades que reproduzem essa relação do rei com seus súditos.No espaço acadêmico não estamos livres de tal trama. A professora Rosana Pinheiro Machado produziu um texto fantástico publicado na Carta Capital falando sobre a vaidade no mundo acadêmico [que está disponível no link  http://www.cartacapital.com.br/sociedade/precisamos-falar-sobre-a-vaidade-na-vida-academica].Seu texto é sugestivo a partir do próprio título: Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica. Ela parece agir como a criança do conto de Andersen, aponta e grita: TEMOS REIS NUS NA ACADEMIA. Num depoimento, lúcido e vivo, a autora escreveu: “A vaidade intelectual marca a vida acadêmica. Por trás do ego inflado, há uma máquina nefasta, marcada por brigas de núcleos, seitas, grosseiras, humilhações, assédios, concursos e seleções fraudulentas. Mas em que medida nós mesmos não estamos perpetuando esse modus operandi para sobreviver no sistema? Poderíamos começar esse exercício auto reflexivo nos perguntando: estamos dividindo nossos colegas entre os ‘fracos’ (ou os medíocres) e os ‘fodas’ (‘o cara é bom’)?”.

Ela sabe a resposta, pois conhece as universidades brasileiras, de hoje e ontem,onde os atores sociais são divididos em dois grupos básicos: os bons e os medíocres, ou os fortes e os fracos, como no conto de Andersen, os sábios e os tolos. E essa divisão entre os alunos fortes e os alunos fracos acontece principalmente a partir do processo de seleção de bolsas de iniciação à pesquisa, à docência e dos projetos de extensão universitária. O desempenho acadêmico é importante, mas ser bolsista é um diferencial dentro deste espaço acadêmico. A formação de uma estudante bolsista sem dúvida é diferente, pois essa experiência lhe proporciona um currículo e uma trajetória dentro da universidade muito mais enriquecedora em relação aos estudantes que não são bolsistas. Além disso, vida de estudante normalmente é uma vida sem dinheiro, porém, numa conversa, um amigo lembrou-me de que, os bolsistas são estudantes diferentes também porque podem contar com dinheiro garantido todo início de mês. Então a tribo de bolsistas é formada pelos alunos fortes e não são estudantes duros, porém não existe uma união entre eles. Se existe uma fronteira entre os fracos e os fortes, existe também uma separação entre os alunos fortes. Os bolsistas muitas vezes reproduzem, num tipo de mimetismo, a linguagem, os trejeitos, a postura e, até mesmo, as brigas de seus orientadores. São simulacros, são personagens representando um papel neste teatro da vida acadêmica. O problema fica grave quando levam muito a sério e acreditam mesmo que são os melhores, seu ego fica inflado e a arrogância ganhando espaço. A vida acadêmica, como parte da vida social, é também uma feira de ilusões. As pessoas são contaminadas e se tornam envolvidas nesse processo. Alguns alunos rotulados de fracos acreditam mesmo na genialidade de seus colegas bolsistas, que na verdade apenas dominaram mais rápido o ethos da academia. Só eles e Deus são testemunhas da angústia e do sofrimento vivido naqueles anos entre provas, seminários, trabalhos e o temível e temido Trabalho de Conclusão de Curso, o TCC que para muitos se confunde ou se identifica com TNT. “A formação de um acadêmico passa por uma verdadeira batalha interna”. Por causa dessa tensão, muitos não percebem que as experiências vividas na vida acadêmica são encenações teatrais, ritos de passagens. A vida acadêmica é simulação. É preciso leveza e tranquilidade para aprender também a jogar esse jogo. A professora Rosana Pinheiro Machado escreveu que: “os seminários e as exposições orais são marcados pela performance: coloca-se a mão no queixo, descabela-se um pouco, olha-se para cima, faz-se um silêncio charmoso acompanhado por um impactante ‘ãaaahhh’, que geralmente termina com um ‘enfim’ [que não era, de fato, um ‘enfim’]. Muitos alunos se sentem oprimidos nesse contexto de pouca objetividade da sala de aula. Eles acreditam na genialidade daqueles alunos que dominaram a técnica da exposição de conceitos”, que na verdade é apenas mais uma farsa, fruto da vaidade. Se no mundo da moda social, as pessoas se orgulham por possuírem roupa, bolsa, relógio, da marca X ou Y, no mundo acadêmico os títulos transformam algumas pessoas vaidosas em proprietários de alguns pensadores ou escolas, como se alguém pudesse ser dono de Foucault, de Marx, outros mais que donos são tomados por um delírio que se sentem a própria encarnação do pensador ou da escola, posso citar as declarações publicas de Sérgio Miceli: “Eu sou Bourdieu (ou quase ele) no Brasil” (Revista Cult, 2012), ou Salvador Dalí: “Eu sou o surrealismo”. Com essa postura apenas reproduzimos este complicado esquema da sociedade dos enganadores e enganados. No espaço do conhecimento a moda e a vaidade têm muito terreno, e nele temos muitos reis nus sendo bajulados e adulados pelos seus súditos.


Assim, precisamos de muita atenção e humildade para resistir a tentação das múltiplas facetas da vaidade, pois ter o ego afagado pode ser bom mas isso é ilusão. Por isso, da mesma forma que precisamos nos imunizar do vírus que produz a febre social, a idiotice e a moda, temos que combater o mito da genialidade, a perversidade dos pequenos poderes e os donos de determinados pensadores.Não podemos perpetuar as ocas vaidades nem lá, onde reina a inteligência de rebanho, nem cá, onde temos ou pensamos ter o pensamento crítico, numa inteligência refinada.

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