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SERENIDADE INTERIOR OU TRANQUILIDADE DA ALMA: A ARTE DE VIVER

A vida feliz ou equilibrada é a vida serena ou tranquila, mas “como é possível à alma caminhar numa conduta sempre igual e firme, sorrindo para si mesma e comprazendo-se com seu próprio espetáculo e prolongando indefinidamente esta agradável sensação, sem se afastar jamais de sua calma, sem se exaltar, nem se deprimir” (SÊNECA, 1973, p.209). Como manter a serenidade interior num mundo estressante? Não é novidade para ninguém que não é fácil manter a tranquilidade da alma, porém é possível viver de forma serena apesar das múltiplas coisas que são estressantes no nosso mundo, mesmo sendo a lógica do tempo presente o oposto da vida tranquila. Existem pesquisas atuais indicando que a maioria da população mundial está estressada, em todas as faixas etárias. Os principais fatores causadores do estresse são os desejos incontroláveis de riqueza, fama e sexo. A ambição para realizar esses desejos geram lutas desenfreadas contra tudo e contra todos. Ninguém consegue ser sereno ou tranquilo num mundo de disputa e concorrência. A mudança de uma vida estressada para uma vida serena ou tranquila dar-se-á apenas quando, e somente quando, mudarmos de postura. De acordo com Sêneca, “nada nos preservará melhor das inquietudes deste gênero do que fixarmos sempre um limite para nossas ambições, sem esperar que a fortuna nos interrompa, como é seu costume; e suspendermos nosso progresso muito tempo antes do instante fatal” (1973, p.217). Nessa perspectiva, podemos minimizar o estresse limitando nossas ambições sociais e econômicas. Vida simples é vida feliz.

Porém, não são apenas essas coisas do macro desejo que nos sequestram a serenidade interior. Os micros desejos da vida cotidiana produzem muitas inquietudes em nós, aqueles pequenos problemas no ambiente de trabalho, as avaliações e a rotina no mundo escolar, os engarrafamentos no transito das cidades, as banalidades da vida domestica tipo: o copo sujo na pia, a toalha molhada em cima da cama, o creme dental amassado e jogado na pia, etc… Essas pequenas coisas em nossas relações diárias não deveriam ter o poder de nos causar perturbações, mas, infelizmente afetam sobremaneira a vida de muitas pessoas. Para evitar isso, ficar imune e conquistar um equilíbrio, precisamos primeiro aceitar que “a vida e a natureza são governadas por leis que não podemos mudar. Quanto mais cedo aceitarmos esse fato, mais tranquilos seremos” (EPICTETO, 2006, p.25). É tolice e muita ingenuidade desejar perfeição dos amigos, filhos e cônjuges. Querer ao nosso lado pessoas sem defeitos. Os seres humanos são limitados, somos todos repletos de defeitos. Como desejar perfeição se também somos imperfeitos? Além do mais, este desejo indiscutivelmente não está em nosso controle. A vida feliz acontece quando conseguimos uma sincronia entre nosso desejo e a realidade, aquilo que o velho Nietzsche chamou de amor fati, isto é, aprender a amar os acontecimentos, amar o nosso destino. “Se o destino governa o mundo e quase tudo o que acontece está fora de nosso alcance, faz sentido ser realista e desejar apenas ‘que tudo aconteça exatamente como acontece’, como disse Epicteto. Não há sentido em afligir-se por coisas que não se pode mudar” (GOTTLIEB, 2007, p.380-1). Para exemplificar essa busca pela sincronia, Epicteto escreveu o seguinte: “Se é liberdade o que você procura, então deseje nada e rejeite tudo o que depende dos outros. Caso contrário, será sempre um escravo indefeso. Procure compreender o que é realmente a liberdade e como ela é conseguida. A liberdade não é o direito ou a capacidade de fazer o que se quer. A liberdade vem da compreensão dos limites de nosso próprio poder e dos limites naturais estabelecidos pelas leis cósmicas. Ao aceitar os limites e inevitabilidades da vida e ao trabalhar com eles, em vez de lutar contra eles, nos tornamos livres. Se, por outro lado, sucumbimos a nossos desejos passageiros [aos nossos caprichos] por coisas que não estão sob nosso controle, a liberdade está perdida” (2006, p.26).

A segunda coisa, de acordo com Epicteto, que precisamos para conquistar este equilíbrio é iniciar um programa de autodomínio. Este programa receitado por ele é denominado na tradição da filosofia Estóica com o termo apatia. A capacidade de moderar ou circunscrever os efeitos das paixões em nossa alma, pois elas são sempre perturbações. E a felicidade estóica é apatia e impassibilidade (REALE; ANTISERI, 1990, p.265). Para conseguir atingir esta impertubabilidade precisamos seguir este programa de autodomínio. Mas, Epicteto recomenda que, devemos começar este programa com moderação para não sofrermos nenhum tipo de efeito colateral. O exercício gradual e lento pode evitar frustração, desanimo e, até mesmo, estresse. Precisamos iniciar com aquelas pequenas coisas dos múltiplos ambientes dos micros desejos que nos incomodam demais. Em seu livro A Arte de Viver, Epicteto escreveu algumas indagações e deu a seguinte orientação: “Seu filho derramou alguma coisa no chão? Você não encontrou aquele documento? Diga a si mesmo: Lidar calmamente com este aborrecimento é o preço que pago para ter minha serenidade interior, para livrar-me de perturbações. Não se consegue nada de graça” (2006, p.24). A vida serena ou tranquila é fruto de muito esforço e dedicação. Ela não é algo que surge do acaso. A arte de viver bem está em manter a serenidade interior, pois sem ela o humano é uma fera brutal incontrolável.

O ser humano é um complexo existencial composto de três dimensões básicas: o agir, o pensar e o sentir. Somos seres humanos não apenas por raciocinarmos, pois a definição do homem como ser racional, ou ser dotado de razão, empobrece a complexa estrutura do ser humano. A humanidade em nós se manifesta, principalmente, pela capacidade de nos sensibilizarmos frente aos sofrimentos do outro, no exercício da alteridade. A capacidade de sentir é ponto chave no processo de humanização, tanto é assim que os psicopatas são rotulados de monstros exatamente por não conseguirem demonstrar sentimento de nenhuma natureza, de nenhuma ordem. Eles não sentem piedade, arrependimento, compaixão, amor por ninguém, tornando-se assim seres insociáveis.

Entretanto, o sentir como dimensão humana só será positiva se mantivermos o equilíbrio, principalmente, nos momentos de crises, confrontos e conflitos. Manter o controle emocional é sempre a melhor postura, pois perder o controle é muito fácil e, muitas vezes, nos conduz a tomada de decisões precipitadas, que quase sempre podemos sofrer reveses e podemos provar a amarga sensação de decepção ou de arrependimento, que é sempre tarde demais. O gosto de fel na boca não é nada agradável.

Manter a calma, tomar a decisão acertada e agir com prudência é o desafio da vida humana. A pessoa que busca colocar em prática o programa de autodomínio, mantendo a serenidade no viver, consegue superar esses momentos de conflitos. Brigar, gritar, agredir é muito fácil, difícil é manter o equilíbrio e não ser tragado pelo sequestro emocional. As tragédias são subproduto do naufrágio emocional, quando nos deixamos ser arrastados pelo turbilhão de nossas emoções. Se não temos controle sob muitas coisas, pois a vida e a natureza seguem leis que independe de nossos desejos, podemos sempre escolher entrar ou não em um conflito, podemos manter o controle da situação antes, pois, depois, quando uma briga se inicia nunca se sabe onde terminará. Ela parece sempre interminável. Ao lado da troca mútua de insultos verbais e agressões físicas, temos sempre neste momento conflituoso a sensação desagradável de impotência, uma vez que nunca se sabe onde vai parar aquela briga. O certo é que tal situação só principia quando nos deixamos ser controlados pelos nossos sentimentos de ira, de ódio, ou de raiva. Neste instante de explosão emocional nos tornamos seres irracionais, pois, sem ter, ou sem se dar, o tempo necessário para decidir entramos em uma estrada sem volta. Após uma decisão tomada, as coisas jamais voltarão ao início – como diz o poeta Milton Nascimento, “nada será como antes”. Neste instante de sequestro emocional não parece que somos nós que estamos vivendo aquele momento fatídico, parece que tem outra pessoa dentro de nós definindo os rumos de nossa vida. Naquele instante em que estamos desgovernados, desnorteados, desorientados não deveríamos, e nem poderíamos, nunca tomar decisões. Quando somos náufragos de nossas emoções não temos condições de decidir absolutamente nada. O náufrago não sabe qual o seu paradeiro, não consegue se localizar. É a mesma coisa de querer, no meio de uma noite escura, em uma floresta densa, encontrar a rota perdida. Com certeza, a pessoa perdida numa situação como essa, ficará rodando em círculo sem perceber, apenas gastará suas reservas de força e energia sem obter o sucesso no seu empreendimento. A serenidade nos orienta que, em tal situação, a melhor decisão é a imobilidade, devemos sentar e esperar. Após passar a noite e a tempestade se for, na claridade do dia, tudo fica melhor e assim é mais fácil ver o rumo a seguir. Ninguém consegue escolher o melhor em meio ao turbilhão emocional. A tranquilidade da alma é o oposto da inquietude, só quando estamos tranquilos podemos escolher a melhor vida para ser vivida, assim podemos evitar os dramas existenciais.

A dramaticidade da existência apenas é sentida pelas pessoas que são vítimas constantes do sequestro emocional, pois a vida para elas é sempre um grande drama. Já quem vive de forma serena a vida não é drama, por isso sabem sorrir da e na vida, pois ela é muito mais uma comédia. Para isso, é necessário manter a calma sempre. Ter coragem é exatamente evitar brigas, ser corajoso é ter serenidade quando tudo conspira para o contrário, para o conflito, para a guerra. Todavia, é muito difícil manter a tranquilidade em uma sociedade acelerada e neorotizante. Entretanto, se não queremos ser vítimas dessa tragédia, temos que manter o equilíbrio sempre para podermos pensar, ponderar, sentir e agir a fim de transformar os momentos bélicos angustiantes em suáveis comédias. As noites não dormidas e as tempestades num copo d’água na adolescência, as crises de identidade profissional na juventude são redimensionadas e parecerão tolices. Não tenho dúvida que podemos dar boas gargalhadas quando, olhamos pelo retrovisor da vida, visualizamos as crises existências superadas, os conflitos interpessoais resolvidos e as guerras sentimentais solucionadas, porém só conseguimos sorrir das coisas que superamos. No entanto, a maioria das pessoas, infelizmente, por falta de serenidade, superdimensionam os problemas e com isso sofrem duplamente. Não conseguem rir de quase nada. Sofrem muito, a vida é um drama. Tenho certeza que se conseguíssemos manter a serenidade, se fizéssemos aquele programa de autodomínio sugerido por Epicteto, o sofrimento e a dor na e da existência seriam infinitamente menores. Manter a serenidade interior ou a tranquilidade da alma é a arte do bem viver.

Referencias:

AUBENQUE, Pierre. As filosofias Helenísticas: Estoicismo, Epicurismo, Ceticismo. In: CHÂTELET, François. História da Filosofia: idéias, doutrinas. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p.167-198. (Volume 1: A Filosofia Pagã: Do século VI a.C. ao século III d.C.).

EPICTETO. A arte de viver: o manual clássico da virtude, felicidade e sabedoria. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

GOTTLIEB, Anthony. Três caminhos para a Tranquilidade: Epicuristas, Estóicos e Céticos. In:___. O sonho da razão: uma história da Filosofia Ocidental da Grécia ao Renascimento. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007. p.345-418.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1990. (Coleção Filosofia, Volume 1)

SÊNECA, Lúcio Aneu. Da tranquilidade da alma. São Paulo: Abril Cultural, 1973.p. 205-223. (Coleção Os Pensadores).

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