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  • cleverfernandes196

RESISTÊNCIA E TRANSGRESSÃO NO CONTO DA AIA

O livro O Conto da Aia (The Handmaid’s Tele), de Marguaret Atwood, foi publicado na década de 1985, após muitos anos [2017] foi adaptado para outra base, tornou-se uma telessérie, mas, antes já tinha se tornado filme [1990] e operá [2000]. Este livro pertence ao gênero distópico da literatura contemporânea. Este gênero se caracteriza pela apresentação de uma estrutura social rígida, regime totalitários e autoritário na tentativa de manter a ordem social, com o uso da força e do controle das informações. Nas sociedades distópicas, o exercício do poder acontece com a criação de uma psicologia do medo, onde todos suspeitam de todos, e ninguém confia em ninguém. Além disso, as relações de poder são extremamente verticalizadas, nada de poder horizontal. Muitas vezes, as relações verticais são justificadas para manter a ordem em nome da paz, ou de um ser transcendental, ou de uma corporação, ou de um Estado, ou algo dessa natureza. Assim, se a verticalização do poder se justifica para manter a ordem, o uso da força se justificava para não voltar ao caos da situação anterior a grande guerra, ou da sociedade considerada como degenerada. Tolerância zero a qualquer divergência ou discordância. Os divergentes são torturados ou eliminados exemplarmente, pois não existe individualidade, no processo de subjetivação os sujeitos são forçados a se assujeitarem ao poder estabelecido. Outra característica deste gênero literário é o discurso pessimista, que alimenta uma visão desesperançada. Apesar disso, como nos ensinou Michel Foucault, onde acontece as relações de poder existe sempre resistência, e o ato de resistência busca mudar a situação de desesperança, resistência liga-se obrigatoriamente a esperança. Ele, o ato de resistência, é a tentativa de criar rotas de fuga para sair do sistema opressor, asfixiante, numa ação coletiva. Não existe resistência como ato individual. Nos últimos anos este gênero literário ganhou muitos títulos e, muitos além de livros dos delírios pós-apocalítico, também tornaram-se filmes ou séries televisivas, entre eles podemos citar: um pioneiro do gênero, no século XX, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; na sequencia, 1984, de Geoge Orwell; Fahrenheit 451, de Ray Bradbury; Jogos Vorazes, de Suzanne Collins; a trilogia de Veronica Roth, Divergente, Convergente e Insurgente; entre outros. The Handmaid’s Tele tem todas essas marcas, discurso pessimista, ordem de um patriarcado autoritário, processo de assujeitamento das pessoas numa rígida organização social. No caso do Conto da Aia temos: os comandantes (o alto escalão da sociedade, responsáveis pela administração da República) e sua esposas (usam vestidos verdes vibrante e são inférteis), as Martas (usam roupas verdes desbotadas, sem vida, opacas, são as  mulheres responsáveis pela organização da casa, limpeza, comida, etc.), as Tias (usam roupas marrons, são as mulheres que são responsáveis pelo treinamento das Aias); as AIAs (usam roupas vermelhas, são as mulheres responsáveis pela reprodução da vida na sociedade – são os úteros do Estado Patriarcal). No período fértil as Aias são violentadas pelos comandantes na tentativa de engravida-las, num rito religioso esdruxulo. Este rito foi criado a partir de uma leitura bíblica inusitada. O texto bíblico encontra-se no livro de Gênesis capítulo 30, versículos de 1-3: “Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: Dá-me filhos, senão eu morro. Então se acendeu a ira de Jacó contra Raquel, e disse: Acaso estou eu no lugar de Deus que te impediu o fruto de teu ventre? Respondeu ela: Eis aqui minha serva Bila; recebe-a por mulher, para que ela tenha filhos sobre os meus joelhos, e eu receba filhos por ela“. O perigo das leituras fundamentalistas, são sempre leituras rasteiras e literais, que perdem a beleza poética e os traços da cultura onde o texto foi produzido. Os fundadores da nova ordem social, para justificar sua loucura, na montagem de um ritual religioso bizarro, leram o texto bíblico como se Raquel estivesse descrevendo uma posição sexual, e com isso explicando a Jacó como deveria transar com sua serva Bíla. Assim, durante o período fértil acontecia na casa dos comandantes da República de Gilead, um ménage à trois constrangedor. Na cama ficam a esposa sentada e a Aia deitada entre as pernas da Esposa do Comandante, enquanto ele ficava de pé próximo da cama penetra a Aia. O sobre os joelhos tornou-se essa cena ridícula repetida algumas vezes na série. Mas, o que Raquel queria dizer com essa expressão: sobre os meus joelhos? Quando olhamos para além do horizonte literal e contextualizamos o texto em sua cultura, perceberemos que o que Raquel estava dizendo era uma uma coisa simples do ponto de vista de sua cultura, pois, sem sombra de dúvida, ela estava dizendo apenas que adotará o filho de sua escrava como seu filho. A expressão faz parte do que se pode chamar direito consuetudinário da Mesopotâmia. Evaristo Eduardo de Miranda, em seu livro, “Corpo: Território do sagrado”, explica detalhadamente, ele nos diz que: “Na Bíblia, o filho ou a filha eram recebidos nos joelhos do pai por ocasião do nascimento, como um sinal de reconhecimento (Jó 3,12; Gn 50,23). Quando a mãe era substituída por uma escrava, o nascituro era posto sobre os joelhos da mãe, e não da escrava” (2007, p.81). Então não era um ménage à trois que Raquel estava sugerindo a Jacó, ela apenas anunciava a futura adoção do filho nascido de sua escrava. Ela estava sinalizando que reconhecia aquele filho como seu filho. A leitura sem contextualizar é sempre problemática e claudicante, e este tipo de leitura é a prática comum dos fundamentalistas, por isso o fundamentalismo é sempre deformador dos textos religiosos, pois retiram as raízes culturais da obra. Neste caso particular, a leitura tinha um interesse cínico, fundamentar uma prática “religiosa”, forjar um ritual bizarro. Nele apenas um participava por vontade própria: o comandante, uma vez que a esposa e a Aia participavam por obrigação. As Aias caso tentassem fugir eram violentamente punidas, em caso extremo enforcadas, pois, como únicas mulheres férteis da República, não podiam deixar de cumprir “seu destino biológico“. Não existe liberdade nesse patriarcado. Elas eram vigiadas o tempo todo. “Estamos em Gilead, ninguém foge“, nos diz uma personagem da telessérie…. Mesmo se constituindo como uma sociedade de controle absoluto, na República de Gilead existem transgressões e atos de resistência à ordem estabelecida, porém não podemos misturar essas duas coisas, pois, muitas vezes, as pessoas fazem uma relação mecânica entre esta duas categorias, como se fossem sinônimos ou semelhantes. Entretanto, existem diferenças e distancia abissais entre elas. As transgressões não são ações de resistências, no The Handmaid’s Tele ou Conto da Aia os comandantes são transgressores das regras apenas para a própria satisfação pessoal, não buscam e nem desejam mudar nada. Essa postura transgressora dos comandantes é o contrário do ato de resistência, que busca sempre criar rotas de transformação do sistema. Resistir é resistir ao poder. Assim, podemos dizer que todos os atos de resistências são também atos de transgressões, porém, nem todas as transgressões são atos de resistência. Isso é visível na Série televisiva que adaptou o livro de Atwood, pois existe um grupo de resistência funcionando no subterrâneo daquela sombria sociedade do patriarcado de Gilead, onde outrora era os Estados Unidos da América. Este grupo não aparece muitas vezes, mas sua ações pontuais são sentidas na superfície, como se fossem pequenas fissuras. Demonstrando que ato de resistência não acontece como ações ruidosas, são silenciosos, são pequenas fissuras. Este pequeno grupo salvam vidas do autoritarismo e da carnificina sanguinária da sociedade patriarcal. A autora como uma médica da civilização, como uma vidente, descreve os sintomas de uma doença que estamos sentindo. A doença do fundamentalismo fascista. Seguindo a leitura deleuziana, podemos dizer que Atwood é uma sintomatologista, ela nos mostra os sintomas dessa sociedade doente. Diagnosticando a doença do machismo, do fundamentalismo religioso e do fascismo que parece não morrer nunca. Sua vidência não é do tipo daquelas religiosas, onde o  vidente liga-se ao transcendente, mas sua vidência é imanente das forças reais que lutam no tecido social para se estabelecer. Assim, não se trata apenas de ver e diagnosticar, mas indicar modos de vidas a partir da luta entre essas forças. O livro não é um manisfesto feminista, mas revela as dores das mulheres numa sociedade centralizada no poder masculino. A autora apresenta uma contradição, as mulheres protagonistas de toda a narrativa são subjugadas pelos homens… E, o pior,  são elas exercendo o protagonismo no movimento subterrâneo de resistência, mas elas também ajudaram na edificação do sistema opressor. Na série, a esposa do comandante era uma intelectual que publicava livros para justificar a decadência da sociedade e depois foi amordaçada e seus livros proibidos, como de todas as mulheres, quando a nova ordem se estabeleceu. A telessérie, em sua primeira temporada, busca não reproduzir o livro, como uma boa adaptação, reorganiza o que temos no livro e no ato de criação cinematográfica produz situações para dar sequência. O cineasta não é alguém que apenas copia o que tem na realidade ou na literatura, as adaptações são criações inventivas. Assim, no final da primeira temporada, existem uma cena magnifica, pois representa a força criativa do cineasta e a capacidade de dar sequencia a história. É o momento da chegada da personagem Moira no Canadá. Ela com a ajuda do grupo de resistência consegue escapar da “cortina de ferro”, do patriarcado de Gilead. Ela escapa e é acolhida no Canadá profundamente receptivo. Em tempo de tantos nômades no planeta, essa cena de acolhida nunca foi tão oportuna, pois a questão dos refugiados é preocupante aqui no Brasil e no mundo. A personagem como refugiada de uma sociedade totalitária é recebida da forma como todos os refugiados de guerra ou políticos deveriam ser acolhidos. Ela parece não acreditar em tudo o que esta acontecendo, depois de anos de tratamento desumano, quando recebe um tratamento humanitário fica bestializada. O semblante da atriz é perfeito. O livro deixa essa possibilidade como algo possível, mas repleto de reticencias, a desesperança é maior que a esperança. As pessoas em geral não levam a sério os romances, pois são experiências do pensamento de alguém que imaginou tudo aquilo, entretanto, romancistas, cineastas, pintores, artistas de forma geral são sintomatologiastas, nos indicam sintomas de doenças que estão se desenvolvendo no tecido social. Deveríamos observar com mais atenção aquilo que estamos assistindo numa série, ou num filme, ou lendo em algum livro. Como falamos, Atwood é uma médica da civilização, e no seu romance distópico, ela sutilmente nos mostra como as transformações de uma sociedade democrática passa para um sistema autoritário. As mudanças não se dão de chofre, repentinamente, mas num movimento gradativo. E parece mesmo que as pessoas num estado democrático de direito, muitas vezes, parece que ficam adormecidas, quando acordam as leis que lhe garantia uma boa vida foram transfiguradas. Nessa telessérie ou no livro, a personagem principal fala algumas vezes isso, quando de repente, frente a brutalidade da nova vida, acordou. Mas, no caso dela era tarde, só a esperança de uma resistência a brutal situação poderia mante-la viva, pois resistir é re-existir. O que parece acontecer no final da primeira temporada.

[Agradeço ao amigo e colaborador deste Blog NERTAN SILVA-MAIA pela ilustração intitulada: FISSURAS DA RESISTÊNCIA]

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