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  • cleverfernandes196

MORTE E SERENIDADE

A morte mesmo sendo o fim de todos os homens, parece que no mundo humano nunca será reconhecida como natural e diante dela reduzimo-nos ao silêncio ou à secreta ponderação de que ela não deveria ter vindo, ainda não. Talvez não consigamos jamais compreender este instante, no qual os laços de uma paixão, nem bem iniciados, são desfeitos, ou quando, diante de nossos olhos, se despede a vida de nossa vida, ou quando depositamos no frio e escuro da terra aquela ou aquele que gostaríamos de carregar nos braços, pela vida, rumo aos céus. Um diálogo interrompido, quando se balbuciavam ainda as primeiras carícias. Neste instante da morte de alguém muito querido, é como se morrêssemos também nós, os que ficamos, um pouco e como gostaríamos de cobrir aquele corpo com o manto de nossa alma, tomá-lo, outra vez, pela mãos e devolvê-lo à vida. Em nós nada mais resta senão o vácuo de uma contundente tristeza e a certeza de amargo sabor: quanto mais intenso o amor, mais sofrido há de ser a dor de um adeus.

Mesmo quando este adeus acontece entre filósofos, a dor e o desespero não ficam ausentes o que poderia ocorrer, já que Sócrates sempre ensinou que a arte da filosofia é exatamente não temer a morte, ou seja, Filosofar é aprender a morrer. Mas, “a lição sabemos de cor. Só nos resta aprender”, entretanto, não acredito que sendo o ser humano um ser de paixão consiga um dia lidar com naturalidade deste instante. A morte foge a racionalidade. Ao longo da História da Filosofia, temos dois relatos interessantes sobre a morte. O primeiro relato encontra-se no Fédon, Platão descreve os instantes finais de seu mestre, no momento exato da execução de sua pena capital. É bom que se diga: Sócrates não cometeu suicídio, foi executado pelo poder público de Atenas. O relato de Platão parece um quadro pintado com as cores mais suáveis possíveis em respeito a serenidade do mestre diante da morte, pois se as cores escolhidas fossem definidas pelos discípulos desesperados seriam outras. Neste quadro temos a última lição do Mestre Sócrates, e, ao mesmo tempo, a revelação que o desespero frente a morte é humano demasiadamente humano. Veja o relato:

O homem trazia numa taça o veneno. Ao vê-lo Sócrates disse:

__ Então, meu caro! Tu que tens experiência disto, que é preciso que eu faça?

__ Nada mais – respondeu – do que dar umas voltas caminhando, depois da haver bebido, até que as pernas se tornem pesadas, e em seguida ficar deitado. Desse modo o veneno produzirá seu efeito.

Dizendo isto, estendeu a taça a Sócrates. Este a empunhou, Equécrates, conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração, nem da cor do rosto, nem dos seus traços. Olhando em direção do homem, um pouco por baixo e perscrutadoramente, como era seu costume, assim, falou:

__ Diz-me, é ou não permitido fazer com esta beberagem uma libação às divindades?

__ Só sei, Sócrates, que trituramos a cicuta em quantidade suficiente para produzir seu efeito, nada mais.

__ Entendo. Mas pelo menos há de ser permitido, e é mesmo um dever, dirigir aos deuses uma oração pelo bom êxito desta mudança de residência, daqui para além. É esta minha prece; assim seja!

E em seguida, sem sobressaltos, sem relutar nem dar mostras de desagrado, bebeu até o fundo.

Nesse momento nós, que então conseguíramos com muito esforço reter o pranto, ao vermos que estava bebendo, que já havia bebido, não nos contivemos mais. Foi mais forte do que eu. As lágrimas me jorraram em ondas, embora, com a face velada estivesse chorando apenas a minha infelicidade pois, está claro, não podia chorar de pena de Sócrates! Sim, a infelicidade de ficar privado de um tal companheiro! De resto, incapaz, muito antes de mim, de conter seus soluços, Críton se havia levantado para sair. E Apolodoro, que mesmo antes não cessara um instante de chorar, se pôs então, como lhe era natural, a lançar tais rugidos de dor e de cólera, que todos os que o ouviram sentiram-se comovidos, salvo, é verdade, o próprio Sócrates:

__ Que estais fazendo? – exclamou. – Que gente incompreensível! Se mandei as mulheres embora, foi sobretudo para evitar semelhante cena, pois, segundo me ensinaram, é com belas palavras que se deve morrer. Acalmai-vos, vamos! Dominai-vos!

Ao ouvir esta linguagem, ficamos envergonhados e contivemos as lágrimas.

Quanto a Sócrates, pôs-se então de costas, assim como lhe havia recomendado o homem. Ao mesmo tempo, este, aplicando as mãos aos pés e às pernas, examinava-os por intervalos. Em seguida, tendo apertado fortemente o pé, perguntou se o sentia. Sócrates disse que não. Depois disso recomeçou no tornozelo e, subindo aos poucos, nos fez ver que Sócrates começava a ficar frio e a enrijecer-se. Continuando a apalpá-lo, declarou-nos que quando aquilo chegasse até o coração, Sócrates ir-se-ia. Sócrates já se tinha tornado rijo e frio em quase toda a região inferior do ventre, quando descobriu sua face, que havia velado, e disse estas palavras, as derradeiras que pronunciou:

__ Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida.

__ Assim farei – respondeu Críton. – Mas vê se não tens mais nada para dizer-nos.

A pergunta de Críton ficou sem resposta. Ao cabo do breve instante, Sócrates fez um movimento. O homem então o descobriu. Seu olhar estava fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou  a boca e os olhos. (PLATÃO, 1985.p. 97-8)

Além de Sócrates, Epicuro foi outro filósofo que morreu serenamente. Temos o relato de sua morte nos escritos de seu discípulo Diógenes Laércio que a descreveu nas seguintes palavras: “sentindo-se morrer, ele [Epicuro] se fez colocar numa banheira de bronze cheia de água quente e pediu um copo de vinho puro, que bebeu. Tendo exortado seus discípulos para que se lembrassem de suas lições, expirou” (PESSANHA, 1996, p.62). Duas coisas merecem explicações: primeiro o desejo de morrer em uma banheira era além do último prazer o recurso para aliviar a dor do cálculo renal que afligiu o pensador por toda vida, por outro lado, o vinho para alegremente esperar o último suspiro. Quem sabe reconciliar com os deuses, em particular com Dionísio (o deus do vinho).  Em uma carta a seu discípulo Idomeneu revela sua serenidade frente a morte que lembra a serenidade socrática. Veja o fragmento do documento:

Eu te escrevo neste dia feliz da minha vida em que sinto próximo da morte. O mal prossegue seu curso na bexiga e no estômago e não perde nada de seu rigor. Mas, contra tudo isso, tenho alegria em meu coração, ao recordar minha conversas contigo. Cuida dos filhos de Metrododro: creio que posso contar com isso pela antiga devoção à minha pessoa e à filosofia (PESSANHA, 1996, p.62)

 Comparando estes dois exemplos de mortes sábias apresentam muitos pontos de contato. Talvez o primeiro e mais significativo seja a lição que a morte não deva ser esperada com desespero, mas sim serenamente como nos casos de Socrátes e Epicuro. O primeiro tomando um cálice de cicuta que o envenena, como vimos no relato de Platão; o segundo um cálice de vinho que lhe proporciona o último prazer. Ambos saúdam aos deuses ao se despedirem da vida, Sócrates a Asclépio (deus da saúde) e Epicuro a Dionisio (deus do vinho).

Todavia, são poucos os sábios que morrem serenamente. Assim, o desespero de sentir a morte do ser amado, da vida de nossa vida, pode ser exemplifica no relato da obra de Morris West, As sandálias do Pescador, quando o amigo pessoal do papa Kiril sofre um ataque cardíaco e a reação do personagem central é de profundo desespero, saindo ao encontro do mesmo, quebrando todos protocolos da cúria romana. Ao chegar à residência do Padre Jean Télémond o autor narra a reação do Pontífice frente a morte do amigo do seguinte modo:

__ Está à morte, Santidade – disse Valerio Rinaldi. – O médico está com ele. Não passará desta noite.

Rinaldi conduziu o pontífice à câmara, onde o médico, com o geral dos jesuítas, olhava para Jean Télémond, e os círios ardiam, para alumiar a última viagem daquele espírito. Télémond está imóvel e inconsciente, no leito, com as mãos repousando sobre a colcha branca, o rosto contraído e os olhos cerrados.

Kiril ajoelhou-se à beira da cama e tentou devolvê-lo à consciência:

__ Jean! Podeis ouvir-me? Sou eu, Kiril! Vim logo que me foi possível. Estou aqui convosco, segurando a vossa mão, Jean, meu irmão! Falai comigo, falai se puderdes!

Não houve qualquer reação de Jean Télémond. Suas mãos continuavam inertes, seus olhos fechados, contra a luz das velas. De seus lábios arroxeados saía apenas a respiração entrecortada dos moribundos.

Kiril, o Pontífice, pousou a cabeça sobre o peito do amigo e soluçou, como nunca o fizera, desde as noites de loucura, no confinamento da cela siberiana. Rinaldi e Semmering permaneciam imóveis, comovidos, mas impotentes para qualquer gesto de conforto. Semmering murmurou as palavras do Evangelho: – Vede como ele o ama …

Depois, quando o soluçar abrandou, Rinaldi passou a mão no ombro sagrado do pontífice e falou-lhe, carinhosamente:

__ Deixai-o partir, Santidade … Está em paz. Nada mais lhe podemos desejar. Deixai-o partir. (WEST, 1988.p. 310-1)

Este desespero frente à morte é acompanhado por uma dor petrificante. Ao receber esta péssima notícia, da morte do ser amado, somos lançados a uma dor excessiva que paralisa todos os gestos. “Somos tomados de espanto, penetrados de pavor ou de aflição e como tolhidos em nossos movimentos até que à prostração suceda o relaxamento. Surdem então as lágrimas e os lamentos que aliviam a alma e como que lhe permitem mover-se mais à vontade”. E é com muita dificuldade que recuperamos a voz e podemos exprimir nossa dor (MONTAIGNE, 1987.p. 101). Então, diante deste instante de perplexidade da morte da vida de nossa vida, o silêncio é rompido com o choro, que busca diminuir a profundidade de nossa dor e, ao mesmo tempo, é o silencioso protesto da alma anunciando o desejo de imortalidade. E as lágrimas no choro são exatamente a linguagem muda da dor.

REFERENCIAS:

PESSANHA, José Américo Mota. As delícias do Jardim. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

PLATÃO. Fédon. Rio de Janeiro: Ediouros,1985

MONTAIGNE, Michel Eyquem. Ensaios 1.. Brasília: UnB, 1987.

WEST, Morris. As sandálias do Pescador. São Paulo: Circulo do Livro, 1988.

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