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MARY E MAX: AMIZADE, DIFERENÇA E AS PESSOAS.

Mary e Max é uma animação para adultos, produzida pelo cineasta australiano Adam Elliot, em 2009, utilizando a técnica Stop Motion (massinha de modelar). Ela versa sobre a insólita, controvertida e inusitada amizade entre uma menina australiana de oito anos e um homem nova-iorquino de quarenta e quatro. História real de uma amizade virtual entre pessoas muito diferentes. Talvez de improvável conexão, mas, aconteceu e consolidou-se em quase vinte anos de correspondências que cruzaram oceanos, cheias de densas questões existenciais. Tudo começa em 1976 quando Mary Daisy Dinkle, cansada de ser ignorada, pegou um catálogo telefônico e aleatoriamente escolheu o endereço de Max Horovitz, e resolveu confiar suas dúvidas e segredos para essa pessoa. Mary é extremamente solitária. E essa solidão é vivida primeiramente dentro de casa, pois, seus pais não lhes dão a mínima atenção. Sua mãe é alcoólatra, fumante compulsiva, egocêntrica e cleptomaníaca; e seu pai é ausente, não só pela dedicação ao trabalho, mas, porque em casa se isolava em um mundo mórbido, uma sala onde empalhava animais. A garota assiste ao seu desenho favorito: Os Noblets. Cria seus próprios brinquedos com sucata. E conversa com seu galo de estimação, Ethel. Na escola não tinha amigos, e, além disso, uma mancha de nascença na testa a transformava em vitima de bullying. Deseja muito ter amigos e gostaria que seus pais lhe oferecessem mais atenção. Do outro lado, temos Max que vive solitariamente em Nova Iorque, tem um transtorno psíquico, síndrome de Aspergere, por isso, não consegue se adaptar à convivência social. Come compulsivamente para tentar afugentar sua solidão. Tem um periquito, Mr. Cookie; um gato, Hal; um peixinho dourado, Rei Henrique VIII que ao morrer era substituído por outro igual, o Henrique IX; alguns caracóis com nomes de cientistas famosos e um amigo imaginário, o senhor Ravióli. Apesar dos trinta e seis anos de diferença os dois protagonistas têm muito em comum, Mary e Max tem a preferência pelo mesmo desenho animado, o vício em chocolate e a solidão. São duas vidas marcadas pela melancolia, e duas mentes filosoficamente inquietas. Essa insólita, controvertida e inusitada amizade começa quando Max recebe a primeira carta da Mary, e após ler quatro vez e ficar dezoito horas olhando pela janela, decide responder a impertinente pergunta da menina: “De onde vêm os bebês nos Estados Unidos? Será que vem da Coca-Cola?”.

Ao responder a carta, Max aproveita a oportunidade para fala sobre si mesmo e desenvolve uma série de assuntos, relata todos os empregos que teve na vida, sua relação com a religião e o judaísmo entre outros, resultando dessa narrativa uma longa carta sobre toda sua vida. Ele responde a questão sobre os bebês da seguinte forma: “infelizmente, nos EUA, bebês não vêm de latas de Coca-Cola. Eu perguntei para minha mãe uma vez quando tinha quatro anos e ela disse que eles vêm de ovos chocados por rabinos. Se você não é judeu, os ovos são chocados por freiras católicas. Se você é ateu, são chocados por prostitutas solitárias e imundas.” Por fim, agradece o chocolate, diz que vai experimentar o prato favorito da menina: leite condensado, e, faz uma pergunta para ela: você tem um canguru de estimação? A partir dessa carta vai surgindo a amizade entre os dois, deixando-os menos solitários e, ao mesmo tempo, livres para contar suas angústias, segredos e questionamentos sobre a vida, as pessoas e o mundo. No princípio o que cativa pela rústica beleza dos personagens e criatividade da produção, vai tomando rumos obscuros e tristes pela densidade dos temas trabalhados na animação, pois essa longa metragem trata de assuntos, complexos e difíceis, tipo: alcoolismo, depressão, solidão, obesidade, preconceito, homossexualismo, bullying, morte, aceitação e auto-aceitação.

Ao longo de varias cartas, os dois viveram momentos perturbadores e tensos narrados na animação com uma delicadeza e leveza que nem sempre é a marca da vida. Ela cresceu e ele engordou ainda mais trocando cartas. Entre os anos de 1988 e 1989, Mary perde os pais, e a orfandade a transforma completamente. Ela casou, entrou para a universidade, onde conseguiu autoconfiança e determinação, tornou-se uma nova pessoa. Dedicou-se aos estudos da mente, seu objetivo era compreender a enigmática síndrome do seu amigo Max. Ao concluir suas pesquisas sobre a síndrome de Asperger produz uma dissertação que várias editoras desejam publicar. Porém, quando envia um exemplar do livro, Max não recebeu nada bem essa noticia, e sua reação foi inesperada. Ele num momento de fúria redigiu uma carta ofensiva, nela despejou todas as emoções sentidas: dor, confusão mental, traição, desconforto por ver seus segredos mais íntimos expostos, estresse e até falta de ar. Essa carta cai na cabeça de Mary como uma bomba, ela sofre muito ao receber essa carta dura e agressiva do amigo, apesar da distância geográfica, ela é afetivamente muito próxima dele, por isso decide destruir todos os exemplares do livro e entra numa profunda e destruidora depressão, que só tem fim quando recebe a resposta da sua carta leite-condensado na qual apenas escreveu: I’my sorry.

Em resposta a carta de perdão de Mary, Max escreveu a carta de reconciliação, ele disse: “O motivo porque te perdoo é que você não é perfeita. Você é imperfeita igual a mim. Todos os seres humanos são imperfeitos, até mesmo o homem do lado de fora do apartamento que joga lixo na rua. Quando era jovem, eu queria ser outra pessoa, qualquer pessoa, menos eu. Dr. Bernard Hazelhof disse que se eu estivesse em uma ilha deserta eu teria que me acostumar comigo mesmo. Ele disse que eu teria que aceitar os meus defeitos e tudo mais, e que nós não escolhemos nossos defeitos. Eles são uma parte de nós e temos de viver com eles. Podemos, no entanto, escolher nossos amigos e estou feliz por ter escolhido você. A vida de todo mundo, são como calçadas muito longas. Algumas são bem pavimentadas, outras são como a minha, tem rachaduras, cascas de banana e guimbas de cigarro. Espero que um dia nossas calçadas se encontrem. Você é minha melhor amiga. Você é minha única amiga. Seu amigo de correspondência americano, Max Jerry”.

O perdão de Max é um gesto de grandeza, pois a grandeza do homem pode ser medida por sua capacidade de perdoar. Sem dúvida, a mensagem de perdão e amor são as mais revolucionárias ideias da e na história humana. Sem o perdão a vida humana é impossível, é intolerável. O perdão é o balsamo da vida, e ele precisa passar por uma tríade: dor, luto e esquecimento. A pessoa ofendida sentirá a dor da ofensa, por causa da decepção vai também viver um período de luto, e depois, caso consiga perdoar, esquecerá a ofensa. Além disso, o perdão acontece na dinâmica da auto-aceitação, preciso reconhecer minhas limitações e aceitar a impotência de muda-las e, ao mesmo tempo, aceitar e reconhecer os defeitos dos meus amigos. Max só perdoou Mary depois que aceitou e reconheceu suas próprias limitações. Reconheceu que não era perfeito. A filósofa Hannah Arendt afirma que a faculdade de perdoar é a única solução possível para o problema da irreversibilidade da ação humana. Ela escreveu: “A única solução possível para o problema da irreversibilidade – a impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar. A solução para o problema da imprevisibilidade, da caótica incerteza do futuro, está contida na faculdade de prometer e cumprir promessas. As duas faculdades são aparentadas, pois a primeira delas – perdoar – serve para desfazer os atos do passado […]; a segunda – obrigar-se através de promessas – serve para criar, no futuro, que é por definição um oceano de incerteza, certas ilhas de segurança, sem as quais não haveria continuidade, e menos ainda durabilidade de qualquer espécie, nas relações entre os homens. […].Talvez o argumento mais plausível de que perdoar e agir são tão intimamente ligados quanto destruir e fazer resulte daquele aspecto do perdão no qual a ação de desfazer o que foi feito parece ter o mesmo caráter revelador que o próprio feito. O perdão e a relação que ele estabelece constituem sempre assunto eminentemente pessoal […], no qual o que foi feito é perdoado em consideração a quem o fez. […] O amor, embora seja uma das mais raras ocorrências da vida humana, possui, de fato, inigualável poder de auto-revelação e inigualável clareza de perceber o quem, precisamente por não cuidar – de maneira quase alheia a este mundo – de o que a pessoa amada é, com suas qualidades e imperfeições, suas realizações, defeitos e transgressões”. O perdão só acontece quando temos a disposição para sairmos de nós mesmos, pois, caso contrário, somos incapazes de perceber e assim jamais seríamos capazes de nos perdoar e perdoar ao outro. Perdoar os defeitos e transgressões alheias é ato de grandeza de reconhecimento das nossas limitações. A carta reconciliação de Max expressa exatamente todas essas ideias de Hannah Arandt.

Como concebemos que a produção cinematográfica não é apenas uma reprodução da realidade vivida ou sofrida pelas pessoas, mas ela é a criação de um pensamento. Acredito que não podemos nos aproximar dessa animação apenas para nos divertirmos com a vida de Max e Mary. Como nos ensinou Gilles Deleuze e Félix Guattari, “a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos”, e eles produzidos nessa animação nos faz pensar muitas coisas. Mas, de acordo com Michel Foucault, “pensar nem consola, nem dá felicidade. Pensar arrasta-se languidamente como uma perversão; pensar repete-se com aplicação sobre um teatro; pensar lança-se de um golpe fora do copo dos dados. E quando o azar, o teatro e a perversão entram em ressonância, então o pensamento é um transe; e então vale a pena pensar”. É nesse sentido que pensamos a partir da arte, não para buscar um consolo ou felicidade, pensamos para nos lançar em um mundo de possibilidade muitas vezes inimaginável, pois a criação artística e literária é “o ato de tornar visível o invisível, tornar audível o inaudível, tornar o dizível o indizível – ou, para formular essa ideia em toda a sua abrangência, tornar pensável o impensável” (MACHADO, Roberto).

A arte nos lança em um devir, num delírio, numa transe. Essa animação nos faz pensar na possibilidade das pessoas viverem de forma completa a vida. Ser uma pessoa inteira e satisfeita com a própria vida é um desafio, mas acredito que é o objetivo de todos, pois só a pessoa completa e satisfeita é feliz. Ninguém será felicidade quando não se aceita, quando acredita que só será feliz com isso ou aquilo, estando com essa ou aquela pessoa. Ninguém é feliz fugindo de si. O poeta Mario Quintana escreveu: “As pessoas não estão neste mundo para satisfazer as nossas expectativas, assim como não estamos aqui, para satisfazer as dela. Temos que nos bastar… bastar-nos sempre e quando procuramos estar com alguém, temos que nos conscientizar de que estamos juntos porque gostamos, porque queremos e nos sentimos bem, nunca por precisar de alguém. As pessoas não se precisam, elas se completam… não por serem metades, mas por serem inteiras, dispostas a dividir objetivos comuns, alegrias e vida“.

Podemos perceber uma ressonância dessa ideia do poeta Mario Quintana no pensador Erich Fromm, em seu livro A arte de amar, quando ele diz: “É inútil tentar que alguém te complete, ninguém completa ninguém, você deve ser completo por si só para poder ser feliz“. Assim, nossas amizades não podem ser construídas no interesse de qualquer ordem. A relação precisa ser de duas pessoas completas. O encontro das diferenças produzindo uma relação completa, não porque as diferenças se completam ou se atrai, mas, porque só existe relação na e com a diferença. Os iguais não se relacionam, pois a igualdade apenas reforça nosso narcisismo. Com o igual apenas estamos olhando no espelho, não estamos nos permitindo experimentar outras possibilidades, queremos apenas ficar na zona de segurança e conforto. Por isso, não podemos pensar como o senso comum que acha que as relações acontecem na diferença para que as metades se completem, ou aquela visão tosca que acha que as diferenças se aproximam como se fossemos imãs. As pessoas se constroem na diferença, mas precisa se compreender com o ser completo e satisfeito, pois ninguém consegue viver uma relação de amizade sem assumir sua vida na totalidade. Por isso, essa completude satisfeita não significa se isolar egoisticamente de tudo e de todos, mas assumir a vida plenamente. Aceitar as oscilações naturais do fluir da existência. A pessoa completa reconhece que a vida não é lisa, plana e sem obstáculos, assumindo a vida na totalidade. Viver a vida de forma autentica. Porém, são poucos os homens que conseguem enfrentar a vida com este realismo, pois as desculpas, pelas escolhas posteriormente consideradas más, são fundamentais para muitos homens inautênticos. Mas viver autenticamente a vida impõe coragem, sabedoria e abandono. E, o escritor australiano, Morris West relata que viver plenamente: “É uma experiência rara, mas sempre luminosa e nobre. Custa tanto ser um homem completo, que existem muito poucos que tenham a sabedoria e a coragem para pagar o preço… Para o conseguir, é preciso abandonar, completamente, a procura de segurança e arriscar-se à vida com ambos os braços. … é preciso abraçar o mundo como um amante e não esperar um regresso fácil do amor. … é preciso aceitar a dor como condição da existência. … tem-se de cortejar a dúvida e a escuridão, como preço da sabedoria. … é preciso ter-se uma vontade férrea ante o conflito, mas sempre apta a aceitar totalmente quaisquer consequências da vida ou da morte”.

Todavia, o autor considera que esta vida inteira e plena, dura e realista que abraça a dor, o sofrimento, a vontade, a dúvida, a escuridão e o risco como consequência do viver é para muitos um desespero que se arrasta, pois a grande maioria dos homens e mulheres buscam na vida apenas o prazer, a realização, a certeza, a luz e a segurança. E atribui em seu romance a responsabilidade de poucos viverem plena e autenticamente ao determinismo histórico, como se o homem fosse vítima de suas escolhas, sartreanamente falando isto é pura má-fé. Pois, ao contrário do que diz Morris West, não acredito que “estamos algemados à corrente da história e podemos travar-lhe o curso, mas nunca desviá-los”. Como travar o curso da história? Visão determinística, como se tudo que aconteceu necessariamente deveria acontecer, isto é, você pode até retardar as coisas, mas cedo ou tarde ela vai acontecer. Como se tudo fosse inexorável. Se fosse assim estaríamos negando nossa liberdade e transferindo a culpa de nossos fracassos e sucessos para terceiros, mas na verdade quem faz ou deveria fazer esta história pessoal e coletiva somos nós. E concordo com Sartre quando diz que mesmo quando abdicamos escolher estamos escolhendo, pois “somos condenados à liberdade” e sendo assim estas algemas nós as construímos e, por isso, temos que nos responsabilizar por elas. Mesmo que nossa vida se apresente como um fardo, temos que ter consciência que este fardo histórico é construção não de um elemento externo (Natureza, Destino, Deus, Sistema, e outros), mas sim escolha pessoal.

É possível afirmar que Max e Mary viveram a vida plenamente, pois assumiram a existência em todas as suas dimensões. Não tentaram excluir os momentos tristes e doloridos da vida. A oscilação de ânimo nos fluxos de afetos foi vivida plenamente. A vida da menina Mary marcada pela oscilação entre a tristeza e a alegria é intensa. Ela assume a própria vida, principalmente, após a morte dos seus pais. Casa, estuda na universidade, constrói uma carreira profissional e escreveu um livro, neste momento vive a máxima potencia da vida; porém depois que percebeu que sua alegria produziu dor e sofrimento no amigo querido, ela desceu do ápice da alegria para a mais forte tristeza. A potência de agir e viver são diminuídos drasticamente. Viveu a tristeza totalmente, esse estado só se finaliza quando recebe a carta de reconciliação do amigo Max. A carta aumentou a potência de existir, ela resolve visitar o amigo de longos anos, entretanto, não conseguiu conhecer o amigo, pois, ao chegar à Nova Iorque, naquela manhã Max havia morrido tranquilamente. Ele estava leve e feliz pela reconciliação.

A leveza da vida é escolha, e a animação termina com uma frase de Ethel Mumford muito interessante: “Deus nos dá parentes… Graças a Deus que podemos escolher nossos amigos”. Assim, podemos viver plenamente a vida quando escolhemos nossos amigos que serão sempre diferentes de nós, e precisamos respeitar e aceitar suas limitações e defeitos.

Referências:

ARENDT, Hannah. A condição humana.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?.

FOUCAULT, Michel. Theatrum Philosoficum.

FROMM, Erich. A arte de amar.

QUINTANA, Mario. Poemas e outros textos.

MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada.

WEST, Morris. A sandália do pescador.

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