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  • cleverfernandes196

CONSUMO, USO E ABUSO: CONSUMIR A VIDA OU VIDA PARA CONSUMIR

Não é novidade que nosso mundo é praticamente bidimensional: produção e consumo. Somos produtores e consumidores, mais consumidores do que produtores e, além disso,  raramente somos usuários conscientes e responsáveis. Produzimos e consumimos sem pensar muito nos impactos dessas ações, mas, Martin  Buber faz uma diferenciação importante entre um e outro, ele escreveu que “o homem, como produtor, tem, naturalmente, muito mais disposição para unir-se ativamente aos seus semelhantes do que o homem como consumidor”, pois o homem na posição de agente produtivo não o faz pensando apenas em si, ao contrário, daquele que numa posição passiva pensa quase exclusivamente em si. Porém, existe neste jogo social, entre o produtor e o consumidor um parasita, o atravessador. Como mediador este agente parasitário é o que tem menos empatia para unir-se ativamente com os seus semelhantes. Produtor, atravessador e consumidor a tríade do mundo. No momento quero pensar um pouco sobre as implicações  possíveis entre consumo, consumidor em seu uso e abuso.  Consumir é descartar, produzir lixo, assim o consumidor é um produtor de lixo. Não somos educados para re-utilizar as coisas, apenas para desejar, consumir e descartar. Vivemos num mundo dos descartáveis, em múltiplos sentidos. O mundo do consumo é também o mundo do descarte. Não são só as coisas que são descartáveis, na nossa sociedade consumista tudo é descartável: coisas e pessoas, pessoas que se tornam coisas, coisas que muitas vezes tem mais valor que pessoas. Nessa dialética da coisificação das pessoas e das coisas que são tratadas com mais dignidade do que pessoas temos a sensação que estamos vivendo numa sociedade adoecida. Numa grave enfermidade do espírito e, o pior, não sabemos ao certo qual remédio temos que tomar para nos curarmos deste mal. Nessa movimentação do uso e abuso das coisas e das pessoas, constatamos que a durabilidade das relações entre as pessoas são semelhantes ao uso dos copos e talheres de plásticos. O mundo do consumo é o mundo das efemeridades. Nos abusamos rápido das coisas, temos urgência em ter o novo. Novo objeto, nova amizade, novas relações. Compramos hoje e amanhã (figurado ou real) já falamos que estamos abusados daquele objeto ou daquela pessoa. Neste mundo dos descartáveis, não temos a mesma percepção temporal de outrora. Nossa percepção temporal hoje é muito dinâmica. As coisas se tornam obsoletas muito rápido. Mas será que tudo entra nessa dinâmica feroz e diluidora? Será que existem coisas não corroídas por essa ordem do uso e abuso?  Existem outras coisas que no manuseio diário não cai no abuso? Há algo que se renova no fluxo do tempo? Parece que quando nascemos  somos lançados numa dinâmica existencial incrível, entramos num rio de algumas poucas coisas inexoráveis, crescimento biológico, envelhecimento e morte, que vamos passar com ou sem a nossa vontade e, ao mesmo tempo, entramos num mar da contingência.  Entretanto, existem coisas que mesmo sendo contingentes se lançam num patamar de essenciais para e na vida, quase como algo que sem o qual a vida não continuaria. Como se fossem naturais e necessários. Mesmo estando na ordem das coisas fluidas, são tratados como permanentes e fundamentais. Acredito que a maneira como usamos, cuidamos, tratamos os celulares e a internet são paradigmáticos neste sentido. O cuidado e carinho como as pessoas lidam com essa máquina e a maquinaria é impressionante, algumas pessoas se sentem uma ligação tão intima com eles que não parecem objetos externos ao corpo, mas uma parte corporal, ou um tipo de prótese vital. Não conseguem se desvencilhar deles um instante… E o apego no uso contínuo e constante não produz abuso, pode até desejar uma prótese mais nova, mais atual, mais sofisticada, mas não consegue nem pensar a vida sem ele. Dia e noite deslizando o dedo carinhosamente naquele objeto, num gesto de carinho e atenção, algo que pode gerar até ciumes em alguém, que desejaria aquele carinho e atenção dedicada ao objeto. No manuseio dele ligado a rede mundial de computadores, investimos muito tempo em coisas fúteis… Nossa ligação com essas próteses tornaram-se mais viscerais com o aprimoramento da internet… Celular e internet, duas próteses que conseguiram dar um salto das coisas contingentes para coisas essenciais, e é estranho a forma como as usamos sem abusar, ao ponto de algumas pessoas não conseguirem imaginar vida sem elas. Não nego que  a máquina e a maquinaria, que o celular e a internet, são invenções importantes e facilitadoras da vida… porém, não podemos fechar os olhos para os problemas que surgiram após seus adventos. Existe uma escravidão, a maquina inventada para auxiliar a vida conseguiu escravizar muitos. A linha entre  liberdade e escravidão, entre virtude e vício é muito tênue. O uso em excesso nos faz passar dessa linha e de repente atravessamos e deixamos nossa liberdade do outro lado. Não dominamos mais a situação, somos dominados, controlados, manipulados, escravizados. Usamos sem jamais nos abusarmos daquilo, como todo viciado que nunca se cansa do seu objeto de prazer. Todo vício é escravizador.  Usamos sem limite aquilo que é objeto de desejo. Abandonar um vício não é coisa fácil, só com muito esforço, determinação e dedicação conseguimos superar diariamente um vício. O lema dos alcoólatras anônimos que recomenda ao viciado que evite o primeiro gole, serve de referência para qualquer tipo de vício. Para deixar de se escravizar temos que evitar o próximo contato com o objeto de prazer, caso contrário nunca vamos deixar a condição de escravo, pois não nos abusamos e seguimos usando, usando, usando infinitamente. São horas de devota atenção e cuidado. Num apego tipicamente adoecedor, nosso apego a essa prótese está numa proporção inimaginável. Algumas pessoas mesmo em situação que deveria abandonar a prótese para fazer algo mais urgente, mantém em mãos o objeto filmando outra pessoa em risco de morte, seja afogando numa lama ou preso numa ferragem. O assustador é que o agente motivador dessa ação [ou da inação de salvação] são o sucesso do vídeo na rede mundial de computadores, o desejo de ver seu vídeo sendo curtido e compartilhado por milhares nas redes sociais. O uso e o abuso do celular é sem dúvida um caso de patologia na sociedade atual.

Quero agradecer ao Nertan Silva-Maia, amigo e colaborador deste Blog, pela ilustração intitulada LIKE.

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