Deleuze ensinou que o artista é um sintomatologista, pois “é possível tratar o mundo como sintoma, nele buscar os signos de doença, os signos de vida, de cura ou saúde”. Assim o escritor, como artista da vida, está mais próximo do médico que faz um diagnóstico, não das pessoas, mas do mundo. Ele tipifica as doenças do mundo apresentando seus sintomas. Deleuze em seus livros sobre Masoch, Proust e Kafka nos revela essa lição de forma cristalina, ele nos mostra que cada um destes escritores analisados produziram um diagnóstico sobre o mundo, sobre a vida, revelando que Masoch apresenta os sintomas de uma perversão, o masoquismo; Proust apresenta os signos de amor, de arte, do mundo e do sensível pelos quais consegue compreender o sentido das coisas; e Kafka com seu teatro dos horrores faz um diagnóstico de um futuro terrível, a Metamorfose e o Processo são paradigmáticos dessa visão diabólica do mundo kafkiana. Nessa linha de raciocínio é possível ver nas obras de artes tipos de sintomatologias da vida, das relações e do mundo. Assim, a comédia de Eleanor H. Porter, publicado em 1913 [no Brasil em 1934], intitulada Pollyanna é uma sintomatologia da vida humana, ela é a tipificação da vida feliz, num tipo de “jogo do contente”. Neste jogo é fundamental buscar a felicidade mesmo nas situações mais adversas. A partir dessa obra é possível dizer que existe um tipo de complexo, o complexo da Pollyanna, ele é um tipo de perversão. Na contramão dessa obra, temos também um desenho animado interessante, pois apresenta outro tipo de sintomatologia. Rabugento é um desenho animado da Hanna-Barbera, criando em 1976. Ele é um cachorro detetive que irrita os bandidos com sua ironia. Famoso pelas risadas asmáticas e seu resmungar quase inaudível e rancoroso. O Rabugento, a anti-pollyanna, é aquela pessoa que vive de mau humor, é intolerante e tende a implicar e se queixar de tudo e todos. No desenho e na vida ninguém escapa do Rabugento, ele é incansavelmente incansável. São duas perspectivas diferentes de encarar a vida, como viver para muitos é sinônimo de ser feliz e amar, porém a vida não é só alegria, prazer e serenidade. Nossa existência se movimenta entre extremos, temos altos e baixos num fluxos contínuo como as ondas do mar. Não existe mar sem ondas da mesma maneira que não existem vidas lisas e planas. A vida é estriada. Saber viver é compreender este fluxo diário em meio à multidão, pois não temos forças para paralisar este movimento natural e nem vivemos isolados no mundo. Ninguém é uma ilha, e nem podemos nos ilhar. Nascemos e iniciamos a trajetória da vida a partir de um encontro, nossa mãe e familiares são os primeiros a nos envolver e em certa medida a nos acolher e proteger, isso quando temos sorte de ter uma família responsável e amorosa, não é o caso de todos os seres humanos. Porém, mesmo numa família amorosa, não nos livraremos dos rabugentos e nem das pollyannas nos caminhos da vida. A vida entre estes dois extremos não é nada fácil, pois as pollyannas querem transformar a vida num parque de diversão, querem aplainar as montanhas e retirar as ondas do mar pois para elas tudo é lindo e maravilhoso, por isso, acordam todos os dias cantando. Isso não parece normal. Além disso, as pollyannas não nos ajudam a viver, pois seu senso de realidade é idealizado e romântico, e só conseguem elogiar mesmo quando as coisas não são dignas de elogios. Não tenho dúvidas, os elogios são importantes para nos motivar e ampliar nossa potência de agir, entretanto a eficácia dos elogios estão relacionadas diretamente a sinceridade do mesmo. Não podemos nos iludir construindo nossa vida baseados em falsos elogios, tipos dos bajuladores. Normalmente as pollyannas são bajuladoras de plantão. Aceitar os elogios deste tipo de pessoa é o mesmo que construir uma casa sob o terreno arenoso, essa casa não se sustentará. Precisamos de elogios, pois eles produz otimismo na e para a vida, mas não do otimismo das pollyannas. O otimismo é propulsor da vida, mas apenas quando mantemos os pés no chão. As pollyannas flutuam para não sentir a dureza do chão. Este complexo de Pollyanna é alienante. Ele nos tira da realidade em movimento estriado e frenético e nos coloca nas nuvens. Se, por um lado, não ficaremos livres das pollyannas , por outro, também não é possível viver sem se encontrar com os rabugentos. Eles, ao contrário das pollyannas, querem transformar a vida num tipo de competição dura. O rabugento quase sempre é um pessimista, não consegue ver coisas boas em quase nada. Os rabugentos em nossas vidas não se cansam de reclamarem e lastimarem da vida, como no desenho animando ninguém escapa do Rabugento, pois ele é incansavelmente incansável. Como não é possível viver sem eles, precisamos aprender como lidar com as pollyannas e os rabugentos em nossas vidas.
cleverfernandes196
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