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A BRINCADEIRA DE MILAN KUNDERA

A Brincadeira é o primeiro romance do escritor tcheco Milan Kundera publicado na Cidade de Praga, em 1967. Ele iniciou sua vida de escritor com um sucesso literário, livro premiado pela União de Escritores Tchecos com uma vendagem de mais de 120 mil cópias logo nos primeiros meses. A obra não é relato autobiográfico, mas fruto de um diálogos com alguns amigos numa viagem, ele mesmo descreve a gênese deste livro nos seguintes termos: “Um dia, em 1961, fui visitar alguns amigos na região mineira onde eu vivera em outros tempos. Eles contaram-me a história de uma jovem operária presa porque roubava flores nos cemitérios para dar a seu amante. Sua imagem não me abandonou mais, e diante de meus olhos desenhou-se o destino de uma mulher para quem o amor e a carne eram mundos separados, para quem a sexualidade era o oposto do amor. Uma outra imagem surgiu como contraponto à da ladra de flores: um longo ato de amor que era, na realidade, apenas um soberbo ato de ódio. Assim – nos diz Kundera – nasceu a história do meu primeiro romance, terminado em dezembro de 1965 e intitulado A brincadeira“. Seu sucesso ganhou o mundo. Após a invasão da União Soviética em 1968 (a conhecida Primavera de Praga), o livro foi censurado pelos comunistas e deixou de circular na Tcheco-Eslováquia. Essa proibição deu uma nova imagem ao livro, o romance ganhou a conotação de arte de resistência política, não que essa fosse a intenção do autor, foram os acontecimentos que transformaram o romance de Kundera num ato político. Mesmo não sendo intencional, o livro é uma bela obra de arte de resistência a todo tipo de regime autoritário. A grande lição dessa experiência do pensamento produzida pelo escritor tcheco é que temos que ter muito cuidado com as brincadeiras, principalmente, quando não estamos vivendo num regime democrático. Os regimes ditatoriais, totalitários, teocráticos, fascistas, nazistas, são regimes mau humorados, não toleram brincadeiras. Tudo é levado muito a sério. Viver neste espaços converte-se em algo muito mais perigoso do que é normalmente, pois perigos há em todas as partes. Porém, nestes regimes a brincadeira mais banal pode nos levar a morte. No romance, o personagem principal, Ludvik pagou um alto preço por uma irônica brincadeira, ao enviar um cartão postal para sua namorada com três frases banais: “O otimismo é o ópio do gênero humano! O espírito sadio fede a imbecilidade! Viva Trotski!”. Frases escritas para provocar, afligir, chocar, inquietar, a alma apaixonada pelo comunismo de sua namorada, entretanto nas mãos dos dirigentes do Partido Comunista foram recebidas como uma declaração de guerra, como um ataque ao coração do partido. Tipo as heresias religiosas, com essas frases, ele estava produzindo uma sacrilégio imperdoável. Por essa brincadeira, Ludvik foi levado aos tribunais superiores do partido (que lembra os tribunais do santo ofício da igreja católica) e fora condenado como inimigo do Estado. A brincadeira, o cartão provocador, tornou-se um pesadelo para o jovem comunista Ludvik. Suas punições imediata foram: deixar a diretoria da juventude comunista, a expulsão da universidade e a prisão numa mina de trabalho forçado. Além disso, aquela brincadeira produziu uma reação devastadora pelo resto de sua vida. O personagem sintetiza essa transformação numa frase: “Eu fora posto para fora do caminho da minha vida“. O jovem Ludvik reconhecido como brincalhão, alegre, irônico, a partir da condenação, e de ter sido lançado para fora do caminho de sua vida, não tinha muitos motivos para sorrir e nem para brincar. Com a condenação recebera o estigma de inimigo do partido, após este ato condenatório sua imagem pública será sempre de um infiel, de uma pessoa perigosa. Nenhum meio terá força para retificar, retirar, excluir, apagar essa imagem impregnada pelo Tribunal Supremo do Partido Comunista. Todos vão enxergar nele apenas a estigma, a imagem atribuída pela condenação torna-se mais real do que a própria pessoa, numa virada absurda, é como se a pessoa fosse transformada na sombra dessa imagem. Ludvik será sempre o furioso e cínico inimigo do regime comunista. Kundera nos narra os dramas desse homem, e assim nos revela a fragilidade angustiante da vida de quem recebe este tipo de condenação. A pessoa marcada, jamais conseguirá se desvencilhar dessa imagem produzida pela condenação pública. Todos os olhares condenam Ludvik, ao sentir isso na própria pele ele nos diz: “É difícil viver com pessoas prontas a nos mandar para o exílio ou para a morte, é difícil fazê-las íntimas, é difícil amá-las“. Quando estamos estigmatizados até as relações entre amigos ficam abaladas, uma vez que inimigo do estado não tem amizade, tem apenas cúmplices, por isso, os amigos com medo de receber a mesma condenação se afastam, a solidão será sua companhia, pois os amigos os condenam a viver sozinho, “pois – como escreveu Kundera – não são os inimigos, mas sim os amigos que nos condenam à solidão“. Ludvik reconhece depois de anos de dor e sofrimento, que o naufrágio de sua vida é fruto de sua funesta propensão às brincadeira ineptas. Assim, nessa experiência do pensamento, Kundera nos faz pensar como uma brincadeira simples, uma pequena frase escrita num cartão-postal, pode destruir toda uma vida, fazendo da própria vida uma brincadeira de mal gosto. Os regimes ditatoriais e totalitários laicos ou religiosos não suportam brincadeiras. A brincadeira só tem espaço quando estamos vivendo num Estado Democrático de Direito, a Democracia é o único regime que tem bom humor. Mas, além do bom humor, a democracia tem outras vantagens em relação aos outros regimes, pois, ao contrário do culto a ignorância, ela exige o esclarecimento. Como ensino Theodor Adorno, a democracia só é possível numa sociedade emancipada, ele escreveu: “a exigência de emancipação parece ser evidente numa democracia”. Então bom humor, tolerância, respeito, compreensão, esclarecimento e emancipação estão de mãos dadas no regime democrático, o que é intolerável para os adeptos ao culto da ignorância e desejam apenas ordem, fila, obediência, adestramento, sem brincadeiras e sem sorrisos… Não podem suportar uma educação para a emancipação, que é uma educação para a contradição, para resistência e que nos imuniza da ignorância cega. Por isso, fora da democracia “cuide-se bem, perigos há em toda parte… Eu quero te ver com saúde, e sempre de bom humor, e de boa vontade” com a vida e no mundo (Guilherme Arantes).


Quero agradecer ao amigo e colaborador Nertan Silva-Maia pela ilustração intitulada: Zert ou Impulso lúdico.



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