Não é fácil relacionar-se com os espíritos livres, com as mentes libertárias, pois precisamos primeiro travar uma forte luta contra o fascista que habita dentro de nosso universo interior e isso gera dor e sofrimento. Da mesma forma, não é fácil ser um espírito livre, pois, além da luta contra o fascista interior, é preciso lidar com a vertigem das alturas do voo. Medo e insegurança são as forças de gravidade que tentam impedir o voo… Mas é preciso coragem para se lançar no vazio onde acontece o voo livre e solitário… caso contrário, seremos como “Serenas” (do The Handmaid’s Tale – o Conto da Aia, da Margaret Atwood) e/ou “Penélopes” (da Odisseia, do poeta Homero) submissas dentro de suas gaiolas, morrendo e definhando em suas vidas passivas, reativas e ressentidas, se anulando, se castrando. Uma vida vivida esperando as ordens do comandante, ou na espera infinita do retorno de Odisseu. A vida do espírito livre é vida de “Lous Andreas-Salomés” (filósofa do século XX, por quem Nietzsche foi apaixonado) e “Fridas Kahlos” (artista mexicana), que querem ninhos para pousar apenas quando desejam, numa vida ativa, proativa e satisfeita, se realizando e sendo feliz. Como escreveu Lou Andreas-Salomé:
“Ouse, ouse… ouse tudo!! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda… a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!! ”
Para viver como espírito livre é fundamental não ceder aos macro-fascismos, com suas leis, modelos e “necrobiopoder”, que nos rodeiam e tentam esmagar até nossos pensamentos; e nem aos micro-fascismos domésticos, que querem domesticar as nossas vidas para ficarmos limitados as pastagens permitidas e devidamente demarcadas, bem estriadas, sem aventura, sem novidade, sem liberdade. Estes pequenos fascismos que com chantagens e mesquinharias tiranizam nossas vidas cotidianas… Temos que reconhecer, como nos ensinou Michel Foucault, que o inimigo maior da vida é o fascismo, “que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”… amar controlar a vida alheia e/ou ser controlado. Para os fascistas de plantão podemos cantar como Cazuza, no seu Blues da Piedade:
“Agora eu vou cantar pros miseráveis Que vagam pelo mundo derrotados Pra essas sementes mal plantadas Que já nascem com cara de abortadas Pras pessoas de alma bem pequena Remoendo pequenos problemas Querendo sempre aquilo que não têm
[…]
Pra quem não sabe amar Fica esperando Alguém que caiba no seu sonho Como varizes que vão aumentando Como insetos em volta da lâmpada”
Precisamos de coragem para não nos deixarmos ser covardemente arrastados para a vala fácil do fascismo. A vala das intensidades tristes, das emoções que produzem e alimentam o delírio, a embriaguez e a alucinação… tipo das vividas pelos ciumentos em suas emoções delirantes e alucinatórias que povoam o seu deserto interior de toda sorte de coisas e seres inimagináveis… O mundo não parece um moinho do poeta Cartola, o mundo é um deserto, um deserto que contraditoriamente está povoado por seres da imaginação delirante. São eles que vão reduzir as ilusões da vida feliz a pó. A vida é o que é, nem alegre, nem triste, nem repleta de dor e sofrimento, nem transbordante de felicidade e prazer. Dela teremos um pouco de tudo, num fluir dinâmico, oscilando entre uma coisa e outra, querer parar este fluxo inexorável é cair na vala delirante… Cair no mundo dos fantasmas, do passado apavorante, das lamentações, dos fingimentos, das queixas, das dores… É não viver a vida em sua plenitude. É matar a possibilidade… Mas existem outros mundos possíveis, onde espíritos livres e mentes libertárias não são sufocadas: “Um pouco de possível, senão eu sufoco”, Gilles Deleuze.
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