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  • cleverfernandes196

ROTINA, FLUXOS VITAIS E ROTEIROS EXISTENCIAIS: TUDO NA VIDA É VIVIDO APENAS UMA VEZ

Atualizado: 20 de fev. de 2021

As pessoas em geral vivem reclamando da rotina, dizem que a odeiam, que ela produz tédio e sufoca todo relacionamento. Mas o que é isso – a rotina? Na visão comum, ela está ligada a repetição. Rotina é a repetição infinita das coisas. Ela é o enfado. A rotina familiar, a rotina escolar, a rotina do trabalho, etc., entretanto, isso só existe quando perdemos a capacidade de enxergar as várias diferenças existentes em todo o universo. Não existe uma única coisa repetida na natureza. Nada é igual. A semelhança é invenção humana. No mundo natural não existe uma única gota de chuva igual numa tempestade, nenhuma folha igual numa árvore e, muito menos, uma pessoa igual a outra no mundo. Na verdade, segundo Hannah Arendt, ninguém jamais será “igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir“, pois mesmo os gêmeos “idênticos” são diferentes. Assim, acreditar que temos o poder de criar um dia igual ao outro e, de forma sequencial, produzir a rotina é transformar os homens num tipo de demiurgo. Dentro da normalidade, todos os nossos dias são diferentes, e só fora dela é que poderíamos viver os dias como se estivéssemos parados no tempo, tipo aqueles filmes em que os personagens acordam e percebem que são prisioneiros do tempo. No mundo real todos os dias são únicos. Tudo é diferença, a repetição é impossível, assim, não é possível repetir nada em nossa existência. Nos filmes, Máquina do tempo, Efeito borboleta entre outros, toda vez que um personagem tenta repetir um prazer, um passado ou uma paixão, é lançado numa tentativa demoníaca de repetição ou mudança da situação desfavorável, sem um resultado satisfatório. Nem os personagens na ficção e, muito menos, nós no mundo real temos controle sobre os acontecimentos, eles são inexoráveis e “irrepetíveis”. Então, a rotina como repetição da vida não existe. A vida é fluxo intenso de mão única e “irrecomeçável”, uma vez em movimento não tem volta nem repetição. São múltiplos os fluxos vitais. Nosso nascimento é consequência de um fluxo de espermatozoides que se lançam ao encontro de um óvulo. Para manter a vida somos alimentados por outro fluxo, o fluxo do leite materno ou de uma mamadeira, já que nem todo mundo teve o seio materno a disposição para se alimentar. Além destes, existem múltiplos fluxos vitais, orgânicos e inorgânicos. Só para lembrar alguns: fluxo sanguíneo, fluxo respiratório, fluxo mental, fluxo menstrual, fluxo das afecções (alegria e tristeza), fluxo temporal (dias, meses, anos), fluxo do trânsito, fluxo comercial, o fluxo emocional. Este fluxo em particular gera vida e prazer, mas também pode levar a morte e a dor. O risco do fluxo emocional acontece quando passamos da linha entre o prazer da convivência e a dependência viciante, neste instante estamos flertando com o perigo, e é um flerte fatal, pois, não tem volta, o fluxo da vida é igual ao fluxo temporal e dos rios…. Não é possível querer retrospectivamente, o passado não volta, da mesma forma, como as águas dos rios nunca sobem a cachoeira. Esta vazão frenética das emoções humanas diminui sua intensidade quando saímos da passividade passional, pois toda paixão é passiva e escravizante. Só conseguimos sair quando tomamos o controle da situação, uma vez que a ação é ativa e libertária. Esta dinâmica é de fácil visualização, basta observar os viciados em qualquer coisa, ou as pessoas apaixonadas, todas são escravas do prazeroso fluxo emocional. Pelo vício são capazes de tudo até o momento quando percebem que são náufragos. Se antes aquele fluxo produzia prazer e satisfação, depois de se reconhecerem náufragos ele gera dor, sofrimento e até a morte. Para escapar dessa situação precisamos encontrar outro fluxo mais forte e com a direção oposta. Assim, escapar deste fluxo emocional é semelhante a saída de um afogamento, o sobrevivente se sente aliviado. Para quem escapa do perigo de morre, o amanhã sempre surge como um novo dia de calmaria e tranquilidade. É o fluxo da vida. Estes múltiplos fluxos vitais são únicos, tudo que vivemos ou sofremos tem o selo de exclusividade, pois na vida tudo se vive uma única vez. Além do mais, quando vivemos a fluidez do dia com muita intensidade e atenção não temos a sensação de repetição e, com isso, não sentimos nenhum tédio. Adicionada a essa atitude de viver com intensidade e atenção, precisamos viver o dia como se o amanhã não existisse, como escreveu o filósofo estoico Sêneca: “Apressa-te a viver bem e pensar que CADA DIA É, por si só, UMA VIDA”. O dia é uma vida, por isso Camus, numa ressonância da filosofia estoica de Sêneca, no seu livro O Estrangeiro, escreveu que: “um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar 100 anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar”. Além de Camus, James Joyce ao escrever seu Ulisses nos revela a densidade de um dia. Nesse livro, Joyce narra um dia de seu personagem em sua cidade natal, Dublin, na Irlanda, em mais de 800 páginas de uma narrativa densa. Mas, isso só é possível quando não banalizamos a riqueza de nossos dias. A invenção mental da rotina é na verdade a própria banalização do dia. Se vivêssemos nossos dias com atenção, percebendo e saboreando cada instante teríamos condições de narrar páginas e páginas como Joyce. A sensação de repetição teria seu fim com essa atitude de sentir cada instante com seu sabor e intensidade. O remédio contra a doença da banalização da vida é viver o presente, entretanto, parece difícil nos concentrarmos nele. Temos uma estranha postura: oscilamos entre o passado e o futuro, somos indiferentes aos acontecimentos cotidianos, ficamos muitas vezes impacientes com o tempo mais importante da vida, o presente. Veja o que Arthur Schopenhauer escreveu: “Apreciaríamos e desfrutaríamos melhor o presente se, nos dias de bem-estar e saúde, não deixássemos de refletir sobre como, durante a enfermidade ou a aflição, as lembranças das horas que decorreram sem dor e privação nos pareceram dignas de inveja – como um paraíso perdido, um amigo esquecido ao qual não demos o merecido valor. Porém, vivemos nossos dias sem percebê-los; só quando chegamos aos dias ruins desejamos recuperá-los. Deixamos passar mil horas alegres e agradáveis sem conceder-lhes um sorriso, e depois suspiramos por elas quando os tempos são sombrios. Em vez disso, deveríamos aproveitar cada momento presente que seja suportável, mesmo o mais corriqueiro, que deixamos passar com indiferença ou mesmo apressamos impacientemente. Deveríamos sempre ter em mente que tais momentos no mesmo instante estão se precipitando na apoteose do passado, onde a memória os preservará transfigurados e brilhantes com uma luz imortal, e representarão a nossos olhos o objeto de nossos anseios mais profundos quando, especialmente nas horas de infortúnio, a recordação vem a lentar o véu”. Com essa postura schopenhaueriana somada com aquela do estoicismo de Sêneca colocaríamos um fim nessa invenção mental da rotina.

Essa tese da inexistência da rotina fundamenta-se principalmente na comparação com a vida natural, pois a natureza em sua contínua transformação não permite nenhum tipo de estagnação e toda repetição existente nela, não é repetição do mesmo, é uma repetição com mudanças. As estações do ano são sempre novas e a cada novo ano percebemos diferenças enormes nelas… e, como diz Heráclito de Éfeso, “O Sol se faz novo todos os dias“. Assim, como não somos divorciados da natureza, a vida humana também acompanha esta dinâmica renovadora e transformadora. Entretanto, tenho consciência da existência, em nossas vidas, de roteiros existenciais. Em nossas casas temos um tipo de roteiro diário, uma ritualizacão quase litúrgica da vida doméstica: acordar, lavar o rosto, tomar café, trocar de roupa e sair para trabalhar ou estudar. Voltar para casa, almoçar etc. Esta ritualizacão tem ritmos e formas diferentes em cada casa, e a ordem também não é a mesma, o que apenas confirma a singularidade da existência humana. No trabalho temos um protocolo que dita os procedimentos cotidianos, independente da função ou profissão da pessoa. Assim, acredito que, a ritualizacão e o protocolo dão sentido à vida, pois a execução diária destes roteiros existenciais produzem a força da vida ou élan vital. E a realização humana encontra-se na continuidade dos projetos construídos no cotidiano da vida ordinária. A coisa se torna problemática quando perdemos o interesse pelo itinerário habitual da vida e o tédio faz morada em nosso coração, assim submergimos a capacidade de admirarmos sobre o que somos e o que fazemos e, por isso, criamos em nossa mente a famigerada rotina e com ela perdemos o gosto pela vida. Para superar e eliminar este monstro mental, precisamos resignificar a nossa vida, atribuindo novos sentidos a tudo que fazemos e somos. Afinal, como nos ensinou Nietzsche, a questão não é qual o sentido tem a vida em geral, mas quais os sentidos vamos atribuir a cada momento de nossa existência no plural. A vida é fluxo contínuo e, por isso, precisamos escolher novos roteiros existenciais, quando os que estamos vivendo não merecem mais ser vividos, pois não é possível viver sem roteiros.


REFERÊNCIAS:

ARENDT, Hannah.

CAMUS, Albert.

HERÁCLITO DE ÉFESO.

JOYCE, James.

NIETZSCHE, F.

SÊNECA.

SCHOPENHAUER, Arthur.



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