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REALIDADE, POSSIBILIDADE E FELICIDADE

A realidade, a possibilidade e a felicidade são categorias complexas, não são de fácil explicação ou definição. Estão articuladas, pois a realidade está vinculada ao mundo das possibilidades. E tem momentos que parece que vivemos mais no mundo do possibilidade, e por isso ela é o maior problema humano. De acordo com Sören Kierkegaard, “a possibilidade é a mais pesada de todas as categórias” (2007, p.240). Muitos advogam que a realidade é dura e pesada, mas na verdade a maior dureza e peso esta na possibilidade, pois, ao contrário do que pensam os sonhadores e idealistas, a realidade é muito leve e suave. Existe uma leveza fantástica na realidade quando se olha o mundo com os olhos da possibilidade, pois nela tudo é igualmente possível: vitórias e derrotas, sucessos e fracassos, o lado terrível como o agradável da vida. Porém, as pessoas no mundo encantado projetam apenas as vitórias, sucessos e felicidade quando imaginam a sua vida, ou no extremo contrário às pessoas desencantadas com o mundo projetam apenas derrotas, fracassos e tristezas. Nessas duas vertentes, a realidade para elas parece sempre dura e pesada. É preciso considerar também o outro lado da possibilidade, isto é, vitória e derrota caminham lado a lado. Não existe na vida apenas uma possibilidade de sucesso e felicidade, ela também é marcada pela possibilidade de derrota e tristeza. No mundo da possibilidade, a realidade poderá ser sempre pior, pois a derrota é como um espectro a rondar a vida de todos. Para Kierkegaard quando se aprende na Escola da Possibilidade, mesmo quando a realidade incida gravemente, a pessoa “se lembrará de que ela [a realidade] é muito mais leve do que o teria sido a possibilidade” (2007,240). Quando se percebe isso, a realidade torna-se mais leve e suave.

            Sendo assim, como ser feliz convivendo com a possibilidade de derrota? O que é felicidade em um contexto de insucesso? Para quem acredita que felicidade só é possível com sucesso, vitória, conquista e aquisição de coisas é muito difícil pensar em felicidade em uma situação adversa. Mas, estou convencido, a felicidade não está ligada as coisas. A felicidade humana não vem das coisas, pois, ela “não tem preço de mercado nem pode ser adquirida em lojas” (BAUMAN,2009,p.12), e, se assim fosse, estaríamos limitando-a sobremaneira. A felicidade não está nas coisas e é outra coisa, pois, as coisas não tem valor em si, como salienta Nietzsche: “o valor duma coisa consiste muitas vezes não no que se ganha ao adquiri-la, mas sim no que se faz para obtê-la, no que custa” (2001, p.81). E, poderíamos dizer que, o poeta Fernando Pessoa acrescentaria: “O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que elas acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis” (Apud, SILVA, 2004, p.49). Além disso, Nietzsche afirma que se questionado sobre o que se deve fazer para ser feliz ele não saberia responder, entretanto continua: “pero yo te digo: sé feliz y haz luego aquello que tengas gana” (Apud, SOLOGUREN, 2010, p.170).

            Nesta linha de raciocínio, a felicidade está ligada ao trabalho, ao esforço, ao orgulho do que fazemos e, ao mesmo tempo, associada ao apetite, a força de vontade e ao empenho. Ser feliz dá trabalho e, por isso, é necessário esforço para conquistá-la. Ela não está lá ou cá, a felicidade é o processo. Por isso, não é possível “atingir um estado seguro de felicidade… Na pista que leva à felicidade, não existe linha de chegada… Estado de felicidade é permanecer no curso” (BAUMAN, 2009, p. 17). A labuta diária, o que se faz com orgulho, o que nos realiza, o que dá sentido a existência, isto sim produz felicidade. A felicidade está ligada a satisfação. Nietzsche de modo divertido diz: “A satisfação nos protege até mesmo de resfriados”(2001, p.10).

            Assim, apenas pessoas satisfeitas são felizes, pois, a insatisfação produz infelicidade. Como bem constatou Erasmo de Rotterdam, a pessoa só alcança a felicidade quando está pronta para querer ser o que ela é (2001, p.34), pois não é possível ser felicidade estando o tempo todo insatisfeito com o que se tem, com o que se é, com o que se sabe e com os outros. Entretanto, não estou advogando a onisatisfaçãoou o complexo de Polyana, isto é, que devemos gostar de tudo e todos como se vivêssemos no melhor dos mundos, e muito menos viver como se todas as coisas fossem boas e todas as pessoas agradáveis. Como Nietzsche, penso que é necessário aprender a dizer: EU, SIM e NÃO, pois apenas os suínos mastigam e digerem tudo, e somente os asnos e os de sua espécie aprendem a concordar sempre com todos (2002, p.307-8). Assim, no processo de construção de nossa felicidade, podemos aprender a afirmar nossas individualidades simplesmente assumindo nossas vidas.

            É necessário afirmar a vida como ela é e não como gostaríamos que fosse, pois tudo o que aconteceu já foi e não retrocederá jamais, afinal não é possível movimentar o tempo para trás. Por isso, “pare de aspirar a ser outra coisa além do melhor de você mesmo. Porque isso está sob seu controle” (EPICTETO, 2006, p.30). Desta forma, nos tornamos criadores de nós mesmos, e, como vontade criadora, seguindo os passos de Nietzsche, devemos acrescentar na ação afirmativa da vida: foi assim, “eu assim o quero! Assim o hei de querer”(2002, p.224). Ainda, para afirmar a vida como ela é, ele escreveu: “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati [amor ao acontecimento]: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo […], mas amá-lo…” (NIETZSCHE, 1974, p.382).

            Nada de conformismo, nem de resignação e muito menos submissão passiva – O amor fati (amor ao acontecimento) nietzschiano é a máxima afirmação da vida como ela é, com seus acasos e necessidades. E isto acontece, em uma ação ativa, convertendo “o impedimento em meio, o obstáculo em estímulo, o adversário em aliado” (MARTON, 1993, p,67), ou seja, amar o inevitável, amar as possibilidades em sua dureza. Desta forma, estaremos satisfeitos em viver a vida inteira e no final podemos como Zaratustra dizer a morte: “Era isto a vida? Pois bem: REPITA-SE!” (NIETZSCHE, 2002A, p.236).

            Outra coisa importante, além da satisfação e da autoafirmação, para imunizar a vida contra a ideologia da felicidade e do sucesso para todos na sociedade do consumo e do espetáculo, é o esquecimento. Como numa receita, para uma vida feliz e plenamente humana, Friedrich Nietzsche recomenda o desprezo pelo passado, pois não existe felicidade sem esquecimento, por isso, Zaratustra afirma: “Como é agradável podermos esquecer” (2002A, p.169). E, em outra obra, ele escreveu: “Não crê nem na ‘infelicidade’, nem na ‘culpa’: sente-se realizado, consigo, com os outros, saber esquecer – é suficientemente forte para que tudo redunde em seu maior proveito” (NIETZSCHE, 2008, p. 15).

            Assim, seguindo as orientações do filósofo, podemos dizer que a autoafirmação, o esquecimento e a satisfação são os fundamentos para a felicidade e o sucesso, pois elas nos libertam dos grilhões da sociedade do consumo e do espetáculo, e nos fazem sentir livres em relação a tudo e a todos para que o hoje possa contradizer o ontem sem culpa (NIETZSCHE, 2002, p. 61). Além disso, Nietzsche nos abre os olhos para uma nova realidade. Ele nos ensina que para os poetas e sábios todas as coisas são preciosas, todas as vivências são proveitosas, todos os dias são sagrados e todos os seres são divinos, inclusive os homens e mulheres (2002, p.172).

            Nesta perspectiva apresentada podemos dizer que a felicidade é um estado de espírito, que independe das condições externas, da realidade ou possibilidade. Assim, a autentica felicidade humana só será encontrada em nosso universo interior, por isso é fundamental a satisfação, com a própria vida; o esquecimento das experiências vividas e sofridas; a autoafirmação e o autodomínio para não se desviar do caminho traçado, ela é mais importante do que a meta estabelecida, apesar das inumeráveis adversidades. É isto que faz a vida humana plenamente feliz.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

EPICTETO. A arte de viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

KIERKEGAARD, Sören. O conceito da angustia. In: REALE, G.; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do romantismo ao empiriocriticismo. 2.ed. São Paulo: Paulus, 2007.

MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993.

NIETZSCHE, F. O crepúsculo dos ídolos. Curitiba: Hemus, 2001.

___. Assim Falava Zaratustra. 2002. Disponível em: http://www.ebookbrasil.org

___. Ecce Homo. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os pensadores)

___. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Martin Claret, 2002A, p. 236.

___. Genealogia da Moral.  2.ed. São Paulo: Escala, 2007.

___. Ecce Homo. Covilha: Universidade da Beira Interior, 2008.

ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da loucura. São Paulo: Martin Claret, 2001.

SILVA, Maria Julia Paes de (org). Qual o tempo do cuidado? Humanizando os cuidados de Enfermagem São Paulo: Loyola, 2004.

SOLOGUREN L., Jaime. La lección de Nietzsche: ‘como se filosofa con el martillo’. Revista de Filosofía, vol. 66, 2010, p.163-174.

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