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  • cleverfernandes196

NOME UM HÁBITO

Como Nietzsche podemos dizer: “Eu sou vários. Há multidões em mim. Na mesa de minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles. Há um velho, uma criança, um sábio, um tolo. Você nunca saberá com quem está sentado ou quanto tempo permanecerá com cada um de mim. Mas prometo que, se nos sentarmos à mesa, nesse ritual sagrado eu lhe entregarei ao menos um dos tantos que sou, e correrei os riscos de estarmos juntos no mesmo plano. Desde logo, evite ilusões: também tenho um lado mau, ruim, que tento manter preso e que quando se solta me envergonha. Não sou santo, nem exemplo, infelizmente. Entre tantos, um dia me descubro, um dia serei eu mesmo, definitivamente. Como já foi dito: ouse conquistar a ti mesmo“. Mas será que temos que conquistar essa unidade, conquistar este eu definitivo? Existe em cada um de nós uma única identidade? Ou somos na verdade uma multiplicidade indivisível? Será que conquistar a si mesmo não é exatamente perceber que somos múltiplos? Além disso, será que nossa aventura não seria melhor sem o nome próprio? “Diante das árvores Alice perde seu nome”(Deleuze, LS, 11), e perder o nome é o que garantiu a sua grande aventura nômade. Mas, por outro lado, quem sabe não somos como Kevin, personagem do filme Fragmentado, e apenas conseguimos manter cativas nossas outras facetas? No filme Fragmentado, Kevin é diagnosticado com múltiplas personalidades, ele consegue com a força do pensamento alternar entre as 23 personalidades que ele é, mas não é disso que estou falando, estou querendo pensar um pouco essa multiplicidade que somos e que, ao longo da vida ou ao longo do dia, nos movimentamos de uma para outra. Penso que o movimentar de um ao outro no fluir tempo-espacial seria mais fácil se não fossemos obrigados a manter o mesmo nome, a mesma identidade, nessa multidão que somos. Somos nômades, por que mantemos um único nome? Mesmos sabendo que somos múltiplos? Aceitamos essa condição por mera convenção social? Deleuze e Guattari afirmam que preservamos nossos nomes “por hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptível, não a nós mesmos“, mas, para os outros. Para não produzirmos uma estranheza, um desconforto. No funda, parece que é apenas “porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa é apenas uma maneira de falar”. [ou falar como todo crente num Deus único, eterno e absoluto: vai com Deus! sabendo que ele não vai a lugar nenhum, pois tem consciência que Ele está em todo lugar, em sua onipresença é impossível não ir e ficar ao mesmo tempo, então aquela despedida é apenas uma maneira de falar]. Podíamos “chegar ao ponto em que não se diz mais EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados“. Somos uma multidão em movimento nas experiências da vida. Seres nômades, errantes pelo mundo. Como naquela canção da Banda Kid Abelha, Nada sei:

“Sou errada, sou errante Sempre na estrada Sempre distante Vou errando Enquanto tempo me deixar”

Algumas pessoas são errantes e assumem essa posição, sua condição nômade. Alguns amigos fizeram uma metamorfose na errância da vida, os conheci com um nome e depois resolveram se redesenhar, se reinventar, mudaram radicalmente de nome. Seja por assumir uma vida como escritor, poeta, ator, ou simplesmente, por não gostar do nome que recebeu. Essa reconstrução deveria ser permanente. Somos diferença e diferentes no fluir da existência. As relações e encontros vão nos afetando e transformando, além dessa multidão que somos, que habita dentro de nosso universos interior. A cada momento um deste personagens assumem o protagonismo da vida. Somos sérios, brincalhões, melancólicos, rigorosos, dependendo da situação que somos lançados no mar da história, como poeticamente Maiakóvski escreveu:

“Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas.”

Como ser único num mundo plural e diverso? Para atravessar o mar agitado da vida é preciso assumir a multiplicidade que somos, apesar do hábito exigir que nos apresentemos sempre do mesmo modo, com o mesmo nome, como se fossemos uma unidade permanente e imutável. O que subjaz num texto como este é a diferenciação entre subjetividade e subjetivação: a primeira matriz de pensamento vinculada a tradição filosófica que compreende o sujeito como portador de uma substância , uma identidade, uma consciência, uma essência, toda filosofia cartesiana, kantiana, hegeliana entre outra se alimentam e são alimentadas por uma metafísica essencialista; a segunda matriz de pensamento, a subjetivação, não atribui ao sujeito uma moldura pré-fabricada, o sujeito é compreendido a partir das interações entre corpos, os múltiplos encontros vividos e sofridos vão construindo o indivíduo. Os corpos são fendidos pela diferença, não possuem nenhuma identidade que não seja provisória. Não somos nessa filosofia nietzschi-deleuziana definidos por nenhuma transcendência. É no plano da pura imanência que nos forjamos como múltiplos, nas múltiplas experiências da vida. E paradoxalmente, somos desertos, como escreveu Deleuze: “Nous sommes des déserts, mais peuplés de tribus, de faunes et de flores”. Somos desertos povoados e órfãos de pais e mães vivos.

Fica aqui o agradecimento ao amigo e colaborador, Nertan Silva-Maia, pela ilustração intitulada NÔMADE.

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