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  • cleverfernandes196

A NEUROSE DA PERFEIÇÃO OU O ÍDOLO VERTIGINOSO DA REALIDADE

Atualizado: 25 de fev. de 2021


Nietzsche nos alertou sobre os riscos de vivermos alimentados pelos ídolos [ou ideias, que para ele são sinônimos], mostrou como eles podem dominar nossa mente e condicionar nosso pensar, sentir e agir no mundo, isto é, as ideias ou ídolos podem definir nosso modo de viver, pois, ao contrário do que se pensa, não os temos, somos possuídos por eles ou elas, e a força monstruosa existente neles pode dominar, conquistar e enfeitiçar as pessoas a ponto de algumas sacrificarem a própria vida e outras ainda matarem centenas. Em nome das ideias as pessoas são capazes de coisas inimagináveis, pois elas se impõem como modelo a seguir ou a se construir na vida de quem se deixou conquistar por elas. Isso acontece porque as pessoas aceitam que existe uma separação radical entre este modelo ideal a seguir e a realidade e, por isso, são enfeitiçadas pela perfeição das ideias e pela ideia de perfeição, acreditam que existe algo a ser atingido. A potência da ideia de perfeição é visível de forma particular no universo religioso, mas não só nele. A questão de fundo pode ser sentenciada: o que é isso, a perfeição? Como essa ideia pode transformar uma pessoa em neurótica? Ao longo da história da filosofia temos basicamente duas linhagens de pensadores, que sempre se rivalizaram, quais sejam, os idealistas e os realistas. A disputa entre eles está ligada diretamente à compreensão do que é a realidade. A visão idealista da realidade provoca uma vertigem do real e uma real vertigem, e com tal vertigem o idealista em nome do ideal nega o real, pois nesta visão as coisas como ideais são inatingíveis e, por isso, as coisas percebidas pelos sentidos são imagens opacas e deformadas do verdadeiro mundo, o mundo das ideias. O paradigma fundante desta visão é o mundo das ideias de Platão. Nesta linha de raciocínio, nossas ideias são sempre imagens de imagens, isto é, representações de ideias existentes em um mundo transcendente. Assim, já que o mundo imanente é negado em detrimento do mundo transcendente, a vida aqui e agora é uma grande fantasia. A realidade é comparada a sombras no clássico mito da caverna. Entretanto, na outra posição, quando se compreende a realidade como Spinoza demonstra, em sua obra a Ética, a partir de uma bela equação: a realidade é sempre igual a perfeição, pois a perfeição só tem sentido quando é realidade e não coisa imaginada ou pensada, assim a perfeição é a realidade na mesma medida que a realidade é perfeita. As duas coisas estão visceralmente ligadas, e, desta forma, a coisa é perfeita quando quem realizou a ação fez o que queria fazer, nem mais e nem menos. Como não existe diferença entre perfeição e realidade, podemos dizer que a perfeição spinozana é plenamente imanente. Assim, “a perfeição das coisas deve ser avaliada exclusivamente por sua própria natureza e potência”, escreveu Spinoza em sua Ética, e, conclui, “por realidade e por perfeição compreendo a mesma coisa” (definição 6, I parte da Ética).Desta forma, na medida em que a perfeição não se encontra em um mundo transcendente, ela está nas mãos do executor da ação. Por isso, um(a) escritor(a) pode dizer que sua obra é perfeita pois foi aquilo que ele ou ela desejou e realizou. Porém, quando desconectamos realidade e perfeição produzimos o grande mal, um mundo sem cheiro, sem sabor, sem cor, sem textura, sem nada… como todo mundo ideal. E isso gera frustração, decepção, mal-estar e neurose naquele que tenta de todas as formas trazer para a realidade uma perfeição imaginaria. Além disso ou por isso, a pessoa que se deixa ser possuída pela ideia de perfeição corre o risco de cruzar a fronteira entre a saúde e a doença mental. E isso acontece quando, e somente quando, o executor deseja que as coisas reais sejam a imagem e semelhança do seu modelo mental. Isso é delírio e gera vertigem. E, na sofreguidão de realizar esta tarefa hercúlea e impossível, ele vive uma vida triste, pois é insatisfeito e sua insatisfação infinita o faz sempre triste, pois, a ansiedade da perfeição não o deixa parar, pois, a coisa sempre pode ficar melhor, na louca e frenética busca por aproximar o mundo tangível do modelo ideal inexistente, quer dizer, existente em seu mundo mental. Muitas vezes, para o perfeccionista não importa o que foi realizado, o problema é o que ainda não se fez, ou seja, não interessa se o bolo foi feito, o que importa é que faltou a cereja. Para ele sempre estará faltando algo na realidade, o que o torna refém dos detalhes, pois acredita que o que conta são eles. Na cegueira do detalhismo ideal não consegue enxergar a perfeita beleza das coisas reais em seu conjunto. Em sua miopia, até parece que a cereja do bolo é mais importante do que o próprio bolo. Não pensem que sou contra a realização do trabalho bem feito, com atenção aos detalhes, gostaria de enfatizar isso, penso que quando uma coisa merece ser realizada, deve ser executada da melhor forma possível. Assim, minha posição apenas condena as ideias que aprisionam as pessoas em um processo de sujeição da mente e do coração, é disso que estou escrevendo. Compreendo que não existe liberdade quando algumas ideias transformam o ser humano em marionetes, isto é, quando a ação humana não é determinada por uma decisão interior sem qualquer constrangimento, pois toda a ação condicionada por algo externo fere a liberdade humana. As escolhas da e na vida só são livres quando brotam do mundo interior. Assim nos tornamos artistas e produtores de nossa existência. A vida como obra de arte. E sem dúvida, a produção artística é um tipo formidável de ação livre quando não é uma arte chapa branca, se constitui quase sempre como uma ação não constrangida, é pura liberdade e, muitas vezes, um ato de resistência. Nesse sentido, o artista pode e deve ser detalhista para expressar de forma mais precisa possível a ideia ou afeto imaginando e planejada por sua vontade interior…. Por isso, é fundamental que todos os artistas sejam muito detalhistas. Claro que sei que não temos um poder absoluto de produção a nosso bel-prazer, mas podemos usar de nossa potência de agir e pensar para lutar contra as adversidades naturais ou culturais visando sempre a execução de tudo que buscamos fazer, caso queiram chamar isso de busca da perfeição, tudo bem, porém, não podemos confundir tal situação com aquela que estabelece, apriori,um modelo perfeito existente num mundo transcendental qualquer, pois, isso provoca vertigem na realidade. Para sairmos dessa vertigem precisamos compreender a realidade na perspectiva do grande Spinoza. Realidade e perfeição são a mesma coisa, ou como canta o poeta Renato Russo: “Nosso futuro recomeça / Venha! Que o que vem é perfeição”.

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