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  • cleverfernandes196

A FARSA DO VIVER

A vida em sociedade é uma farsa, somos todos farsantes, pois nos disfarçamos para sobreviver na selva de pedra das cidades, porém não devemos encarar essa postura como algo imoral, na verdade os valores morais de uma sociedade são edificados exatamente nessa dissimulação coletiva. Disfarçar, dissimular, fingir, imitar e repetir o comportamento dos outros faz parte do jogo social de ontem e de hoje. Quando nascemos somos estimulados a imitar gestos e palavras, e assim gradativamente vamos aprendendo a jogar, e não tenhamos dúvida, precisamos viver e aprender a jogar, como escreveu o poeta Guilherme Arantes, “nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar“. E esse jogo social surge da necessidade de segurança da e na vida. Nietzsche, em sua obra Aurora (Livro I, 26), acredita que essa habilidade temos em comum com os animais, ele escreveu uma página de rara beleza relacionando o comportamento animal e a moral, que transcrevo a seguir:

“As práticas que são exigidas na sociedade mais refinada, evitar com precaução tudo o que é ridículo, bizarro, pretensioso, refrear as virtudes bem como os desejos violentos, mostrar-se semelhante aos outros, submeter-se a regras, diminuir-se — tudo isso, enquanto moral social, se encontra até na escala mais baixa da espécie animal — e é só neste nível inferior que vemos as ideias ocultas de todas essas amáveis disposições: pretende-se escapar aos perseguidores a ser favorecido na busca da presa. E por isso que os animais aprendem a dominar-se e a disfarçar-se de tal maneira que alguns deles, por exemplo, se adaptam sua cor à cor do ambiente (por meio do que chamamos a “função cromática”), chegam a simular a morte, a assumir as formas e as cores de outros animais ou o aspecto da areia, das folhas, dos líquenes, das esponjas (o que os naturalistas ingleses denominam mimicry — mimetismo). E assim que o indivíduo se dissimula sob a universalidade do termo genérico “homem” ou no meio da “sociedade” ou ainda, se adapta e se assimila aos príncipes, às castas, aos partidos, às opiniões de seu tempo ou de seu meio: e a todas nossas formas sutis de nos fazermos passar por felizes, reconhecidos, poderosos, amáveis, encontraremos facilmente o equivalente animal. O sentido da verdade também que, no fundo, não é outra coisa senão o sentido da segurança, o homem o tem em comum com o animal: não queremos nos deixar enganar, nem perder-nos a nós próprios, escutamos com desconfiança os encorajamentos de nossas próprias paixões, dominamo-nos e ficamos desconfiados conosco mesmos; tudo isso também o animal faz; nele também o domínio de si provém do sentido da realidade (da inteligência). De igual modo, o animal observa os efeitos que produz na imaginação dos outros animais, aprende a olhar-se através disso, a considerar-se “objetivamente”, a possuir, em certa medida, o conhecimento de si. O animal julga movimentos de seus adversários e de seus amigos, aprende de cor suas particularidades: contra os representantes de certas espécies, renuncia definitivamente ao combate, tal como adivinha à simples aproximação as intenções pacíficas e conciliadoras de muitas espécies de animais“.

Nos submetemos as regras para sermos aceitos, assumimos as múltiplas plumagens sociais, por exemplo: se estamos num ambiente piedoso nos transvestimos dos trejeitos dos piedosos, se estamos num lugar intelectualizado, colocamos a capa de intelectuais, se o ambiente exige demonstração de força somos fortes e assim sucessivamente. Vivemos uma constante e frenética movimentação colocando e tirando as máscaras sociais de acordo com o momento e o ambiente. A dinâmica das máscaras esconde nosso verdadeiro rosto, pois com elas não deixamos que as pessoas nos vejam como somos; e, além disso, ser transparentes na sociedade está fora de questão, visto que ninguém quer ver o rosto de ninguém. Nesse sentido, a vida é uma farsa.

Porém, se para Nietzsche a dissimulação é algo praticamente natural e é uma estratégia para sobrevivência social, o pensador Sêneca movimenta-se em outra direção. Ele questiona que segurança se pode ter vivendo uma vida toda sob a égide das máscaras. Para o pensador estoico, a vida como farsa

“[…] Nasce do cuidado que o homem empenha em fingir e em jamais se deixar ver tal como é: é o caso de muitas pessoas, cuja vida só é hipocrisia e comédia. Que tormento, esta permanente vigilância sobre si mesmo, este terror de ser surpreendido num papel diferente do que aquele que se escolheu! E esta preocupação não nos deixa mais, desde o instante em que nos persuadimos de que somos julgados a cada olhar que nos lançam. Com efeito, aparecem mil incidentes, que nos revelam contra nossa vontade; e quando logramos nos observar sem desfalecimento, que satisfação! Mas que segurança pode oferecer uma existência inteira passada sob uma máscara?“

Será que é possível viver em sociedade sem máscaras? Ou viver em sociedade só é possível usando o tempo todo máscaras para sobrevivência? Responder essas questões não é coisa fácil, a complexidade e a dificuldade em estabelecer uma possível resposta é enorme. Mas, para mim, uma coisa é certa existem pelo menos três tipos de pessoas na dança das máscaras e rosto:

I.  As convergentes, elas se identificam com as máscaras, usam e não parece incomodar-se com elas, até parece que se acostumaram tanto com as máscaras que nem se lembram do seu rosto real, porém, em alguns momentos, sofrem um impacto quando se olham no espelho e enxergam seu rosto sem máscaras ou maquiagens;

II. As divergentes, elas não se identificam com as máscaras sociais, o uso as incomodam sobremaneira, não se acostumam com elas e sabem jogar o jogo social, por isso as usam no desconforto, quando são necessárias para sobrevivência no mundo, mesmo divergindo sabem que não são aquela imagem que vendem socialmente;

III. As insurgentes, elas, não só não se identificam com as máscaras como as divergentes, mas, lutam contra o uso dessa camuflagem hipócrita, as insurgentes são pessoas consideradas antissociais, pois são transparentes e querem mostrar o rosto o tempo todo numa postura audaciosa.

Porém, de qualquer forma, a vida social é uma farsa, entretanto, a postura convergente me parece a mais farsante de todas, pois, se empenhar em fingir ser o que não é transforma a vida em uma grande mentira, é a negação da própria vida. Afinal, quando colocamos as máscaras e jamais deixamos revelar o que somos estamos negando nossa existência real, tem algumas pessoas nessa postura que chegam ao ponto de fingir tanto que jamais se deixam ver tais como são de fato. Mas no fundo, elas apenas buscam esconder as cicatrizes dolorosas das experiências vividas e sofridas, usando uma densa camada de maquiagem. Desta forma, escondem as cicatrizes e seguem em frente com a coleção inimaginável de máscaras, uma diferente da outra para cada ocasião, e assim podem se misturar aos demais sem que ninguém as percebam como realmente são. As máscaras as camuflam como os animais mudando de cor de acordo com o ambiente. Com esta estratégia buscam apenas apresentar uma versão mais agradável de si mesmas, selecionando ângulos e perfis mais degustáveis. Isso é muito triste, pois a vida convergente é uma grande hipocrisia, a maior farsa. Porém, para não cometer injustiça, sei que, como escreveu Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.   Mas, não tenho dúvidas, estas máscaras da vida nos escondem e, ao mesmo tempo, nos impedem de apreciar a vida como ela é, em suas pequenas e não menos importantes coisas, na verdade a vida se constitui destes pequenos, comuns, ordinários e banais momentos que chamamos rotina, apesar das lamentações é dela que sentimos saudades. Mas, voltando a questão das máscaras, a segunda postura parece mais equilibrada, pois o uso das máscaras na vida divergente oferece um tipo de segurança, parece que assim a existência é mais tolerável, fruto desse sentimento de segurança, onde a vida social tem um caráter menos violento, sabemos quem somos e também sabemos que para vivermos em grupo precisamos usar algumas máscaras de sobrevivência, entretanto, não nos identificamos com elas, nessa postura oscilamos entre a segurança e o tédio. A última postura listada, a vida insurgente parece aos olhos dos idealistas a melhor, pois de forma peremptória nega o uso das máscaras sócias, entretanto, esse pequeno grupo de resistência sofre muito. Sua luta acontece cotidianamente, mostrar o tempo todo o rosto é atitude insensata se expõe demasiadamente e isso a fragiliza. E mesmo assim a vida social continua sendo uma farsa, uma vez que mesmo mostrando o seu rosto sem máscaras e maquiagem estará convivendo com outros que se recusam mostrar seu rosto. Mas, afinal, não existe saída dessa encruzilhada? Temos que aceitar que viver em sociedade é uma farsa? Como viver sem se sentir uma grande farsa? Acredito que precisamos apenas aceitar a vida como ela é, cheia de contradição e complexa, precisamos reconhecer que na dinâmica da vida temos que conviver com as limitações inerentes a ela. Porém, a aceitação da vida é apenas uma parte, a outra parte da questão que precisamos refletir é: qual o sentido da vida? Que tipos de relação estão sendo construídas por nós? O que estamos levando e/ou deixando em nossas relações interpessoais? São questões complexas, que temos que enfrentar, pois é necessário compreender o que estamos fazendo com a nossa vida. Mas como a vida é um projeto subjetivo cada um terá sua resposta pessoal, afinal a vida é uma singularidade, não existe uma resposta universalmente válida. Não existe um remédio único para a farsa do viver.

Referências:

NIETZSCHE, F. Aurora. São Paulo: Escala, 2007.

SENECA. Da tranquilidade da alma. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores).

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