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  • cleverfernandes196

A ARTE, A VIDA E A EMBRIAGUEZ

Existe uma articulação entre arte, vida e embriaguez. De acordo com o poeta maranhense FERREIRA GULLAR (1930-2016), “A ARTE EXISTE, porque a vida não basta”. Mas como se da o processo criativo da arte? Quais são as condições para a produção artística? Como podemos visualizar essa articulação entre arte, vida e embriaguez? Essas são questões inquietantes, pois a existência da arte não se explica racionalmente, ela é delírio. Ele também escreveu:

“Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira”.

A parte delirante, imaginativa, embriagada é a melhor parte da vida, ela é pura arte. A arte de viver está em afirmar os saudáveis delírios da existência e aceitar a leveza produzida pela arte. Esta visão de Ferreira Gullar tem ressonância direta com o pensamento do filósofo alemão NIETZSCHE. Para Nietzsche vida, arte e embriaguez estão visceralmente ligadas, pois a vida precisa da arte, e “para que haja a arte, para que haja uma ação e uma visualização estética é incontornável uma precondição fisiológica: a embriaguez” (§853, VONTADE DE POTENCIA – VP). Mas, para compreender essa articulação, é preciso antes saber o que é afinal cada um desses signos para el bigodon da Basiléia.  Para ele, a vida não se distingue do mundo, do real, da natureza, na verdade ela se revela e se constitui a partir deles. Não existe vida e o mundo, ou vida e o real, ou, por fim, a vida e a natureza. A vida é physis e o “mundo da vida” engloba tudo. O pensador para esclarecer escreveu, no §1067 do seu livro Vontade de Potência: “Quereis um nome para este mundo? Uma solução para todos seus enigmas? Este mundo é a vontade de potência – e nada além disso! E também vós mesmos sois essa vontade de potência – e nada além disso.” Assim, para Nietzsche, o mundo é vontade de potência. Mas o que significa afirmar que o mundo é vontade de potência?Para ele, vontade de potência é força cósmica controladora de tudo, porém, não existe uma questão para saber quem tem vontade.Essa questão de quem quer a potencia é absurda, pois o SER é por si próprio vontade de potência, e ela revela a sua natureza como força cósmica. Como a vida é também vontade de potência, a vida é força de vida e nada além disso. O filósofo acrescenta que este mundo ou vida é “uma imensidão de força, como força em todas as partes, como jogo de forças e ondas de forças, ao mesmo tempo uno e vários, […] como um devir que não conhece nenhum tornar-se satisfeito, nenhum fastio” (§1067, VP). Podemos falar então que a vida é luta incessante de forças ativas e reativas. Ela é devir. De acordo com Nietzsche, a vida para fluir com mais intensidade precisa da arte, pois ela desempenha um papel fundamental para potencializar a existência. “A arte e nada como a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande sedutora para a vida, o grande estimulante da vida” (§853,VP), pois, de acordo com ele, “toda arte possui um efeito tônico, aumenta a força, alumia o prazer (isto é, o sentimento da força, evoca todas as sutis recordações da embriaguez)”(§357,VP). Para ele, “a arte é essencialmente afirmação, bendição, divinização da existência” (§362, VP).  Mas, segundo Nietzsche, “para haver arte, para haver alguma atividade e contemplação estética, é indispensável uma precondição fisiológica: a embriaguez. A suscetibilidade de toda a máquina tem de ser primeiramente intensificada pela embriaguez: antes não se chega a nenhuma arte. Todos os tipos de embriaguez têm força para isso, por mais diversamente ocasionados que sejam; sobretudo a embriaguez da excitação sexual, a mais antiga e primordial forma de embriaguez. Assim também a embriaguez que sucede todos os grandes desejos, todos os afetos poderosos; a embriaguez da festa, da competição, do ato de bravura, da vitória, de todo movimento extremo; […] a embriaguez sob certos influxos meteorológicos, por exemplo, a embriaguez primaveril; ou sob a influência de narcóticos; a embriaguez da vontade, por fim, de uma vontade carregada e avolumada. – O essencial na embriaguez é o sentimento de acréscimo da energia e de plenitude. A partir desse sentimento o indivíduo dá às coisas, força-as a tomar de nós, violenta-as – este processo se chama idealizar. Livremo-nos aqui de um preconceito: idealizar não consiste, como ordinariamente se crê, em subtrair ou descontar o pequeno, o secundário. Decisivo é, isto sim, ressaltar enormemente os traços principais, de modo que os outros desapareçam” (IX INCURSÕES DE UM EXTEMPORÂNEO, §8, Crepúsculo dos ídolos – CI). (Quero aqui abrir um parêntese. Normalmente Nietzsche não explica o significado de seus signos linguísticos, mesmo quando ele utiliza uma palavra com o sentido totalmente oposto ao usual. Agora nessa citação ele fez questão de explicar o sentido que estava dando ao termo idealizar, coisa rara. Fecha parêntese). O sentimento da embriaguez corresponde a um aumento de força, e o fluxo de forças inebriantes gera sensação de plenitude. E este sentimento acontece de múltiplas formas e intensidades variadas: a embriaguez do sucesso, da vitória, da realização de uma tarefa complicada, da superação dos limites pessoais, da aprovação em um concurso, da conquista do podium, entre outras possibilidades. Para exemplificar podemos explorar a utilização dessa ideia no livro, do nietzschiano Thomas Mann, A Montanha Mágica. A história começa narrando a visita do jovem Hans Castrorp ao seu primo num sanatório para tratamento de doenças respiratórias no alto da montanha, porém quando estava lá descobriu que também precisava se tratar. A narrativa lenta e morosa descreve a vida desse jovem na luta pela saúde pulmonar no sanatório. O personagem depois de algum tempo naquela rotina experimenta o sentimento da embriaguez ao perceber um olhar de uma jovem visitante da planície em sua direção. Como todos que vivenciam essa fantástica satisfação da embriaguez, se ele pudesse paralisar aquele instante para sempre não iria jamais se libertar da embriaguez. Quando estamos sob esse efeito não queremos que passe, pois se trata de uma ebriedade que tem o objetivo em si mesma e, por causa dela,“nada se afigurava mais odioso e menos almejável do que o desembriagamento” (MANN, p.311).  O simples flerte entre Hans Castrorp e Clawdia foi suficiente para produzir a explosão ébria, “mas o que o encantava era menos o fato de ela parecer tão bonita, do que a sensação de que isso reforçava a doce névoa que pairava na sua cabeça, aquela ebriedade que se bastava a si mesma e desejava ser justificada e alimentada” (MANN, p.312). É a expressão alegre da vontade de vida. Nestes instantes, e só neles, conseguimos “dizer sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade em meio ao sacrifício de seus mais elevados tipos […] ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser” (X – O QUE DEVO AOS ANTIGOS §5, CI). Por isso, mesmo na situação de doente internado, o jovem Hans participa dessa vontade de vida. A embriaguez potencializou a sua existência. Mas isso pode ser percebido na vida de todos, não só na literatura. Para Nietzsche, somos todos artistas da e na vida, assim a vida como obra de arte precisa de algum tipo de embriaguez, pois só inebriado conseguimos viver intensamente, e apenas assim conseguimos fazer de nossa existência uma composição artística, pois essa predisposição fisiológica da e na produção artística alimenta e retroalimenta o corpo, já que, por um lado, é necessária essa embriaguez para criar a arte e, por outro lado, ela produz vitalidade para seguirmos a vida superando todos os obstáculos pequenos ou grandes. Isso é visível na vida de muitos atletas, eles acordam cedo para treinar e aprimorar sua arte, e a embriaguez da prática esportiva os faz superar as dores físicas e eles seguem alimentando essa sensação com uma névoa na cabeça chamada vitória. A vida como obras de arte precisa dessa embriaguez, que é a sensação de entusiasmo, euforia e alegria de viver.Neste sentido, o nietzschiano Thomas Mann está com razão quando escreveu que: “a civilização em vez de ser um assunto do intelecto e da sobriedade ponderada, depende do entusiasmo, da ebriedade e da sensação de deleite” (MANN, p.778). Somos movidos no processo civilizatório pelas sensações da embriaguez, não pela sobriedade. Dionísio versus Apolínio. A luta entre forças ativas e reativas, a primeira criadora de vida a outra negadora da existência. As pessoas são felizes quando são movidas pelas forças afirmativas da vida, quando fazem da própria vida uma obra de arte. Apenas quem viver realizando o que gosta consegue sentir o gosto da vida feliz, e por viver assim como artista, vive embriagado, transbordando entusiasmo, euforia e alegria.

REFERÊNCIAS:

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. 2.ed. Porto: Rés-Editora, 2001.

MANN, Thomas. A montanha mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2.ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos ou Como se filosofa com o martelo. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de potência: ensaio de uma transmutação de todos os valores.

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