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  • cleverfernandes196

SERVIDÃO VOLUNTÁRIA OU DESEJO DE ESCRAVIDÃO

Qual o preço da servidão? É possível imaginar que alguém livremente escolha a servidão? Por que e quais as razões para desejarmos a servidão? O povo pode escolher entre ser livre e ser escravo, e decidir voluntariamente pela servidão? Parece que essas questões são totalmente equivocadas pois, como a liberdade é um dos mais preciosos valores da humanidade, não fazer sentido questionar sobre a possibilidade de pessoas ou grupos de pessoas escolherem, ou pior, desejarem a servidão. Entretanto, essas questões não são assim tão esdrúxulas, o filósofo Gilles Deleuze contemporaneamente nos diz o seguinte: “à questão, de como o desejo pode desejar sua própria repressão, como ele pode desejar sua escravidão, respondemos que os poderes que esmagam o desejo, ou que o sujeitam, já fazem parte dos próprios agenciamentos de desejo” (Deleuze; Parnet, Dialogues, p. 160-1), e, na sequência, afirmou ainda que não podemos desconsiderar essa sutil cumplicidade entre o sujeito desejado e o poder que o oprime. Dentro de uma maquinaria social, podemos não desejar a liberdade. Muito antes de Deleuze, Étienne de La Bóetie escreveu, em 1549, um “panfleto”, que ficou conhecido, com o seguinte titulo: Discurso da servidão voluntária. Neste breve trabalho de reflexão filosófica, La Bóetie faz exatamente essa questão para si e para os outros: O povo pode escolher entre ser livre e ser escravo, e decidir voluntariamente pela servidão? Logo no inicio ele sentencia: “É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios. Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem? Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre. Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la?”. Porém, sua constatação é estarrecedora, para os homens e mulheres de hoje, ele nos diz: “A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter”. Assim, após abrir mão da liberdade e assumir a condição de servo de um príncipe, este povo produz um processo de objetivação que de repente parece que este príncipe não é um ser humano. Na relação entre o senhor e o escravo, a ilusão do escravo produz um ser infinitamente poderoso. O senhor é colocado como um ser absolutamente diferente do comuns dos mortais e, embriagado pela ilusão, o escravo acredita que está na presença de um ser mítico. A ilusão do ídolo, o delírio do mito, a idolatria transforma um homem de carne e osso num ser, numa fortaleza, inabalável. Parece que não aprendemos a lição do profeta bíblico Daniel (Capítulo 2, O Sonho de Nabucodonosor), os ídolos são imponentes, aparentemente fortes, mas possuem pés de barro. Isso é significativo, pois os pés de barro do ídolo são para que não esqueçamos da fragilidade do príncipe, ele é igual a todos os mortais. Além disso, meu amigo Nertan Silva-Maia fez a seguinte observação, “nós sabemos, toda idolatria é vazia e cai por si e sobre si mesma”, pois nessa relação temos a idealização do ídolo. Já aprendemos com Nietzsche o perigo das relações idealizadas. Ídolos são ideias, são perigosas, elas produzem frustrações quando o pé de barro do ídolo se parte e desmorona. A fortaleza idealizada se revela frágil. Por isso, La Bóetie faz questão de lembrar que quem o fez diferente, com tanto poder e força, foram os próprios servos, escrevendo: “esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes. Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis? Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas? Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos? Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha? Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência? Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos?”. Então, a servidão surge para o filósofo como uma doença incurável, “temos, antes, de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a ponto de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural”. Para ele, não há dúvida de que a liberdade é algo natural “e que, pela mesma ordem e de idéias, todos nós nascemos não só senhores da nossa alforria mas também com condições para a defendermos”. Buscando confirmar sua tese, La Bóetie nos faz observar a natureza, pois, segundo ele, os animais nos dão lições e nos ensinam o valor da liberdade. “Só quem for surdo não ouve o que dizem os animais: viva a liberdade! Muitos deles morrem quando os apanham […] opõem resistência com as garras, os chifres, as patas e o bico, demonstrando assim claramente o quanto prezam a liberdade perdida. E uma vez no cativeiro, dão evidentes sinais do conhecimento que têm da sua desgraça […], continuando a viver mais para lamentarem a liberdade perdida do que por lhes agradar a servidão”. A dor da sujeição é sentimento comum aos seres humanos e animais, não dá para se habituar à servidão sem protestar pela liberdade perdida. Por isso, para conserva uma nova tirania, “não existe melhor meio se não aumentar a servidão e afastar tanto dos súditos a ideia de liberdade que o povo cativo, tendo embora a memória fresca, começam a esquecer-se dela”. E, assim, La Bóetie constata: “Incrível coisa é ver o povo, uma vez subjugado, cair em tão profundo esquecimento da liberdade que não desperta nem a recupera; antes começa a servir com tanta prontidão e boa vontade que parece ter perdido não a liberdade mas a servidão. É verdade que, a princípio, serve com constrangimento e pela força; mas os que vêm depois, como não conheceram a liberdade nem sabem o que ela seja, servem sem esforço e fazem de boa mente o que seus antepassados tinham feito por obrigação”. Só quando não se conhece a doçura da liberdade se vive na servidão, pois “não é possível […] aceitar a sujeição, depois de ter conhecido o gosto da liberdade”, caso contrário sentiremos sempre o amargor do veneno da servidão. Então, para La Bóetie, só quem nasceu com a canga no pescoço esta desculpado por não lutar por sua liberdade, pois é a força do hábito, do costume, recebido na educação pode justificar uma servidão voluntária. Mesmo assim, no diz o filósofo, “sempre haverá umas poucas almas melhor nascidas do que outras, que sentem o peso do jugo e não evitam sacudi-lo, almas que nunca se acostumam à sujeição”. Porque as tiranias só sobrevivem quando conseguem subtrair do povo sua “liberdade de agir, de falar e quase de pensar“. Enquanto existir a liberdade de ação (direito de ir e vir), a liberdade de pensamento (direito de refletir sobre qualquer coisa), a liberdade de expressão (direito de comunicar o que se pensa), teremos condições de sonhar e gritar por nossa liberdade. Ação, comunicação e reflexão são constitutivas da nossa condição humana, sem isso somos de fato e direito escravos de um sistema. Não podemos perder esses direitos fundamentos que nos fazem humanos. Servidão voluntária jamais, nem os animais suportam a vida de servidão.

Gilles Deleuze; Claire Parnet. Dialogues. Editora Flammarion, 1996.

Étienne de La Bóetie. Discurso da Servidão Voluntária. Microsoft. iBooks.

TEB – Tradução Ecumenica da Bíblia. Edição Loyola, 1994.

Quero agradecer ao amigo e colaborador Nertan Silva-Maia pela ilustração intitulada: Solidão voluntária ou Medo da liberdade.

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