O que é filosofia? Essa pergunta é recorrente nas salas de introdução à filosofia, não é uma questão de fácil resposta, além do mais, quando nos deparamos com algumas respostas ficamos ainda mais confusos, pois, elas são múltiplas e muitas vezes contraditórias entre si, por isso, quando nos aproximamos e entramos nesse universo da filosofia é necessário saber qual perspectiva estamos falando. Deste modo, é preciso fazer uma explicação prévia, o que é filosofia para esse pensador em tela. Como ele mesmo, em uma palestra, fez questão de indagar: o que fazemos quando falamos que estamos fazendo filosofia? Qual a especificidade do fazer filosofia? Apesar de não existir um consenso, existe um senso comum que define a filosofia como uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas da realidade, assim, radicalidade, rigorosidade e totalidade são características para definir e diferenciar uma reflexão geral de uma reflexão filosófica. Nessa perspectiva, a filosofia torna-se uma coisa improdutiva e estranha, pois, quando a atribuímos apenas esse papel exterior de refletir sobre algo, ela perde seu papel interior de criação. Essa visão da filosofia como apenas reflexão sobre algo retira dela a capacidade criativa e criadora. A filosofia adjetivada é vazia, não tem conteúdo próprio, tais como: filosofia do direito, filosofia da educação, filosofia da arte, filosofia da ciência entre outras. Essa postura transforma a filosofia numa intrometida e prepotente juíza de todas as áreas do conhecimento humano. Não existe grandeza nessa visão comum sobre a arte filosófica limitada a ser reflexão sobre, pelo contrário, esta atribuição que a filosofia é apenas reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas da realidade mata o que ela tem de melhor. Além do mais, aquilo que quer ser tudo acaba sendo nada. E, sejamos honestos e realistas, as outras áreas do conhecimento humano não precisam da filosofia para refletir sobre seus produtos. Deleuze escreveu que é até uma piada de mal gosto dizer que um cineasta precisa do filósofo para refletir sobre o cinema, ou que um matemático tem que chamar um filósofo para refletir sobre a matemática e assim por diante. Filosofia na visão deleuzeana não é reflexão sobre. Então retornando a questão inicial, o que é filosofia para Deleuze e para que serve? Vamos tentar responder a primeira parte da questão: O ser humano busca respostas sobre os enigmas do cosmo, do mundo e da vida desde dos primórdios da humanidade. Ao longo da história da humanidade temos múltiplas respostas aos mistérios e enigmas dos fenômenos naturais: a chuva, os ventos, as mares, a noite, o frio, o calor etc. Nossa capacidade inventiva nos fez responder as inquietações naturais por meio dos mitos, eles são produtos de nossa imaginação artística. Assim, podemos esquematicamente dizer que produzimos respostas aos problemas que a realidade nos apresenta a partir de três formas, ou seja, é possível afirmar que pensamos o mundo natural e social de três modos básicos: pensamos quando produzimos artes, o mito é a primeira forma de pensamento humano; pensamos quando produzimos filosofia; e pensamos quando fazemos ciência. Assim, arte, ciência e filosofia são modos diferentes de enfrentar e responder aos problemas da realidade. São modos diferentes de pensar as mesmas coisas, e não existe uma hierarquia nesses modos de pensar. São expressões do pensamento. Pensamos artísticas, filosófica e cientificamente. Porém, a não existência de uma hierarquia não significa que são iguais. Evidente que existe diferença marcantes entre elas, pois quando a arte pensa, ela cria afetos e perceptos, ou seja, a arte ao pensar quer afetar e aguçar nossa percepção sobre a realidade; a ciência pensa a natureza criando funções, leis, equações e modelos explicativos do funcionamento dos fenômenos naturais; e a filosofia pensa inventando conceitos. “As ciências, as artes, as filosofias são igualmentes criadoras, mesmo se compete apenas à filosofia criar conceitos no sentido estrito. Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: ‘os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, cria-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus conceitos, como um dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso’, mas é necessário substituir a confiança pela desconfiança, e é dos conceitos que o filósofo deve desconfiar mais, desde que ele mesmo não os criou” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.11-12). Só a filosofia cria conceitos para explicar as coisas. “O filósofo é o amigo dos conceitos, ele é conceito em potência”. Então, nessa perspectiva deleuzeana, quando estamos fazendo filosofia estamos produzindo conceitos, estamos trabalhando com uma rede conceitual. Assim, para Deleuze, filosofar não é refletir sobre mas é compreender as coisas conceitualmente. Não vamos ler um livro filosófico para saber se o filósofo A ou B são verdadeiros em sua produção conceitual, temos que observar se aquele livro funciona, se seus conceitos funcionam de fato. Agora vamos entrar na segunda parte da questão, qual seja, para que serve a filosofia? Vivemos em um mundo utilitarista, pragmático e consumista, por isso a pergunta sobre a utilidade da filosofia se impõe, nessa mentalidade perguntar sobre para que serve alguma coisa é comum. Os estudantes de quase todas as áreas vivem se perguntando: Para que estudar filosofia? Num mundo marcado pela ciência, pela técnica e tecnologia parece mesmos que não existe espaço para filosofia. O pensador alemão Martin Heidegger proferiu uma conferência intitulada “O fim da filosofia e a tarefa do pensamento”, na qual falou que “o fim da Filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlável de um mundo técnico-científico e da ordem social que lhe corresponde”. Na segunda parte da conferência ele busca responder a seguinte questão: “Que tarefa está ainda reservada para o pensamento no fim da Filosofia?” Não tenho a intensão de responder a questão, nosso objetivo aqui é outro. Apenas lembrei que o avanço do mundo técnico-científico produziu um mal estar no universo da produção filosófica. Ao ponto de alguns pensadores decretaram o fim da filosofia. Mas, voltando ao nosso tema, a luta frenética entre teoria e pratica, parece que a pratica é mais importante. Estamos condicionados e viciados na pratica. As pessoas dizem até que a teoria e importante, precisamos teorizar mas vamos logo a prática. Tudo nesse mundo da técnica precisa mostrar sua aplicabilidade. Qual a utilidade, para que serve? São questões fundamentais no nosso universo mental, nesse mundo rápido e acelerado, onde ninguém tem tempo para nada, longos tratados teóricos não têm espaço. No mundo regido pelo capital, onde tempo é dinheiro, é impossível pensar em estudar qualquer coisa sem visar uma aplicação quase direta e, sem pensar na rentabilidade. O que ganho estudando isso? Conhecimento pelo conhecimento, saber pelo saber, é um absurdo nesse mundo da prática aliada a técnica, que esperamos sempre ações velozes, o pensar e o refletir precisam mostrar sua importância prática, em outras palavras, podemos afirmar que no mundo da tecnologia e pratico o pensar filosófico deve estar a seu serviço. A reflexão serva da ação. Nessa visão, o pensar não pode ter vida divorciada da ação. Parece a repetição do período medieval, quando a filosofia era serva da teologia. No mundo teocêntrico a filosofia tinha sua vida subordinada a ciência mais importante da época: a Teologia. No mundo do capital, a filosofia deve ser serva das ações capitalistas. E como isso acontece? Isso pode acontecer de várias formas, poderíamos listar as possibilidades, vamos ver algumas: transformar a filosofia em mercadoria rentável, seja na forma de livros e dvds. Em ambos o marketing busca vender a ideia que a pessoa está comprando respostas para muitas perguntas, vendem a filosofia como receitar para viver bem, ou para boa vida. O mercado o tempo todo está ganhado dinheiro com este tipo de atitude. A filosofia como objeto de consumo de massa. No fundo, esses livros e dvds água com açúcar não alimentam o pensar, pelo contrário acaba inibindo. Vejo isso como uma estratégia dos inimigos da filosofia, que sabem que filosofar é um risco. Mas, isso não basta, além de transformar a filosofia em mais um produto outra estratégia utilizada pelos inimigos do pensar foi a tentativa de desqualificar a filosofia e os filósofos, como sendo coisa muito difícil e aquele um lunático. A construção do estereótipo do filósofo: um homem louco, sujo, ateu, desligado do mundo social. Porém, temos outra forma de matar a filosofia. Basta tirar dela sua capacidade criativa, analítica que é sua força e intensidade. Para Nietzsche, e penso que ele tem razão, a filosofia perdeu sua força e intensidade quando foi institucionalizada nas universidades, e quando ser filósofo tornou-se ser professor de filosofia. A filosofia prisioneira dos muros das universidades ou escolas morre, pois perde sua vitalidade criativa e sua liberdade. Além disso, é muito simples compreender essa denúncia do Nietzsche, o professor como funcionário de uma instituição terá que pensar dentro dos limites da instituição seja o estado, a igreja ou uma empresa, que tem seus próprios interesses. Nela o pensamento livre, selvagem e nômade da filosofia não tem espaço. Os funcionários da filosofia institucionalizada não se permitiram pensar para-além das regras e valores do seu patrão. Quando Nietzsche escreveu a sua segunda consideração extemporânea intitulada “Schopenhauer educador”, ele lançou as mais ácidas críticas contra a filosofia produzida intramuros das universidades, a filosofia serva das instituições de ensino, serva dos seus valores e interesses. O professor da Basileia escreveu: “Diógenes objectava quando se louvava um filósofo diante dele: o que é que ele tem de extraordinário para mostrar, ele que durante tanto tempo se entregou à filosofia sem nunca ter afligido ninguém? Com efeito, seria necessário colocar como epitáfio no túmulo da filosofia universitária: NUNCA AFLIGIU NINGUÉM” (§8 CEII, Apud nota do livro Nietzsche e a filosofia de Deleuze, p.159). Para Gilles Deleuze, esta ideia nietzschiana ajuda muito para respondermos as questões sobre a utilidade da filosofia e/ou para que ela serve. De acordo com ele, “quando alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, porque a pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao Estado nem à igreja, que têm outras preocupações. [A filosofia] não serve a qualquer poder estabelecido. A filosofia serve para afligir. A filosofia que não aflige ninguém e não contraria ninguém não é uma filosofia. [Ela] serve para atacar o disparate, [e deve] fazer do disparate qualquer coisa de vergonhoso” (DELEUZE, 2001, p.159). Nestes termos, fica claro, a filosofia não serve a nenhum poder estabelecido. Ela é sempre devir, movimento, instituinte nunca instituída. A filosofia inventa conceitos para afligir, provocar, instigar, incomodar, contrariar. Caso não faça isso, ela não é filosofia, ela já está morta e seu epitáfio já foi definido por Nietzsche: nunca afligiu ninguém. Nessa perspectiva, toda filosofia a serviço do estado ou de uma instituição qualquer não é filosofia, é na verdade a doutrina oficial deste estado ou instituição. A filosofia é uma máquina de guerra plantada dentro do Estado, por isso ela é um risco, ela é também nômade, selvagem e intempestiva. Aprendermos isso com o velho Nietzsche, para quem a filosofia é sempre intempestiva, e o que significa ser intempestiva? Significa que a filosofia com devir (como nômade) deve ser uma filosofia radicalmente contra o seu tempo e, ao mesmo tempo, a favor se possível de um porvir. Então, para concluirmos nossa conversa, filosofia na perspectiva deleuzeana é criação de conceito, que só se faz filosofia a partir e para construção dessa rede conceitual. E esta rede conceitual não deve servir aos poderes estabelecidos. A filosofia surge para afligir, por isso nunca será acolhida nos espaços institucionais: escolas, universidades, igrejas, tribunais, etc. pois estes espaços querem sempre pensamentos dóceis, sedentários, civilizados e doutrinadores do comportamento dito bom, e a filosofia é o oposto disso, ela é sempre selvagem, nômade e intempestiva.
Referências:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 3.ed.São Paulo: Editora 34, 2010.
DELEUZE, Gilles. ¿Qué es el acto de creación? Conferencia em la Femis Escuela Superior de Oficios de Imagen y Sonido 17 de marzo de 1987. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dXOzcexu7Ks.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Lisboa: Editora Res, 2002.
HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. São Paulo: Abril Cultural, 1987. (Coleção Os Pensadores).
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