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  • cleverfernandes196

DELEUZE, A ARTE E O ATO DE RESISTÊNCIA

Para início de conversa podemos e devemos fazer aquelas questões recorrentes para quem trabalha com filosofia: O que é isso a filosofia? ou o que se faz quando se diz que está fazendo filosofia? ou o que pode a filosofia? São questões que não tem uma resposta única, as respostas muitas vezes são contraditórias entre si. Não existe consenso, por isso, para desenvolver uma palestra sobre Gilles Deleuze responder essas questões se impõe, pois ele tem um forma peculiar de compreender, fazer e operacionalizar a filosofia. Mas, mesmo não tendo uma única definição de filosofia, como se pode ver nas ciências, mesmo nas ciências humanas, pois, entre historiadores, geógrafos, sociólogos, apesar das diferenças e rivalidades de base teórico-metodológico, existe um mínimo de acordo na hora de definir o ofício de suas ciências, eles conseguem definir minimamente o que é história, o que é geografia, o que é sociologia. Isso, não acontece na filosofia. Apesar da dificuldade de definir a filosofia de forma univoca, pelo menos, podemos dizer que existe, entre os filósofos, uma constatação de uma dura realidade. A filosofia é um exercício proscrito em nossa sociedade, ela é uma disciplina exilado, pela hegemonia do mundo técnico-científico. A filosofia não tem espaço num mundo da prática, do utilitarismo e do tecnicismo exacerbado. Num mundo onde a ação é mais importante do que o pensamento, e digo pensamento e não reflexão, pois vocês verão quando nos aproximarmos da filosofia de Deleuze, que filosofia para ele não é reflexão de nada, mas ela é uma das modalidade do pensamento humano. No mundo da técnica a filosofia está excluída. Entretanto, não foi exclusividade dos séculos XIX, XX e XXI a tentativa de decretar a morte da filosofia. No período medieval a religião subordinou e subjugou o pensamento filosófico ao saber mais importante da época, qual seja: a Teologia. A filosofia era a serva da teologia. Podemos dizer que, ao longo de sua história, a filosofia já recebeu várias sentenças de morte. Só para exemplificar vou apresentar três dessas sentenças. Marx profetizou a morte da filosofia em sua decima primeira tese contra o filósofo alemão L. Feuerbach. Nessa tese Marx escreveu que até então os filósofos haviam se limitado e se preocupado em interpretar o mundo, mas agora a tarefa deles será transforma-lo. Marx com isso subordina o pensamento filosófico, as ideias filosóficas, a ação transformadora. Essa tese Marxiana ser fundamenta numa nova ideia de História. A visão materialista da história, história construída pelos homens e mulheres de carne e osso, sem interversão divina. Visão imanente da realidade sem apelo ou apego a qualquer forma de transcendência.  Não existe nada fora dessa realidade do aqui e agora. As ideias para Marx funcionam apenas quando produzem ou provocam ações transformadoras da realidade, aquilo que foi cunhada como práxis na literatura de linhagem marxista.

Outro profeta a morte da filosofia foi Stephen Hawking, este grande cientista que faleceu em março deste ano. Ele e Leonard Mlodinow no livro O Projeto monumental ou o Grande Projeto sentenciaram com todas as letras: “a filosofia está morta. Ela não tem acompanhado a evolução da ciência moderna, particularmente da física. Os cientistas se tornaram os portadores da tocha da descoberta, em nossa busca pelo conhecimento” (p.5). Será mesmo real essa constatação da morte da filosofia, pois não acompanhou as inovações da ciência? Tudo bem, que não podemos negar que nossa mentalidade é cientificista, mas será mesmo que a filosofia foi substituída pela ciência? Aqui parece uma reação ressentida de quem sentia uma certa arrogância da filosofia como mãe das ciências. A sensação que um certo tipo de filosofia, que se colocava como juíza e legitimadora do conhecimento, assumia essa postura de superioridade. Falsa, mas a filosofia que se compreende coo juíza do mundo, como uma grande intrometida, provocava essa sensação.

Além de Marx e Hawking, Martin Heidegger também colocou em pauta este tema da morte da filosofia. Numa conferencia intitulada O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, proferida em abril de 1964, na cidade de Paris, Heidegger lançou duas questões:

  1. Em que medida entrou a filosofia, na época atual, em seu estágio final?

  2. Que tarefa ainda permanece reservada para o pensamento no fim da filosofia?

Em linhas gerais, a posição heideggeriana é que a filosofia perdeu seus espaço para o desenvolvimento técnico-científico. A sociedade da técnica descartou o pensamento metafísico.

Se em Marx o fim da filosofia se anunciou como supressão e transformação na práxis; em Hawking a filosofia não se atualizou e tornou-se obsoleta; em Heidegger a filosofia tem o último desafio de pensar a questão do pensamento, sendo sua última tarefa. Existe um conjunto de obras, artigos e livros debatendo essa temática espinhosa da morte do pensamento filosófico, o fim da metafísica. Ma, não vamos entrar nessa seara, pois para o nosso autor em questão, Gilles Deleuze, a morte da filosofia não é importante e, por isso, não lhe interessa. Para Deleuze isso é tolice, pois, independente das profecias da morte da filosofia, ela continua seguindo sua história realizando sua tarefa. Com Deleuze sabemos o que pode e o que faz a filosofia ontem e hoje. Ela, como um meteoro intempestivamente rompe com nosso estado natural de estupor mental e pensa por meio de conceitos. Compreender o que é o pensamento, isso sim é importante para Deleuze.

Para ele, o pensamento tem três grandes formas ou modos: o pensamento artístico, o pensamento científico, o pensamento filosófico. Arte, Ciência e a Filosofia sempre enfrentam o caos, traçando pelo pensamento um plano, esboçando um plano sobre o caos, produzindo um tipo de ordenamento no caos. O pensamento não e exclusividade da filosofia, da mesma forma que a criação não predomínio da ciência e da arte. Todas as três formas de pensamento são criadoras. A arte quando pensa cria perceptos e afetos; a ciência quando pensa cria, inventa, gera funções, leis, prospectos, proposições científicas; e, por fim, a filosofia quando pensa cria, trabalha, gera, inventa, seus conceitos” (CV, p.160). Ele ainda alerta que: “Não se dirá somente que os nomes próprios tem usos muito diferentes nas filosofias, ciências e artes … A filosofia procede por frases, mas não são sempre proposições que se extraem das frases em geral […] Das frases ou de um equivalente, a filosofia tira conceitos, que não se confundem com ideias gerais ou abstratas; enquanto que a ciência tira prospectos, proposições que não se confundem com juízos; e a arte tira perceptos e afectos, que também não se confundem com percepções ou sentimentos” (QÉPH, p.32-3). Ninguém, nem artista, nem cientista, nem filósofo, descobre nada num céu ou numa realidade, tudo é produção do pensamento. Ciência, arte e filosofia são todas inventivas, criadoras. Além disso, “a filosofia, a arte e a ciência entram em relações de ressonância mútua e em relações de troca, mas a cada vez por razões intrínsecas. É em função de sua evolução própria que elas percutem uma na outra. Neste sentido, é preciso considerar a filosofia, a arte e a ciência como espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que não cessam de interferir entre si. A filosofia não tem aí nenhuma pseudoprimado de reflexão, e por conseguinte nenhuma inferioridade de criação. Criar conceitos não é menos difícil que criar novas combinações visuais, sonoras, ou criar funções científicas” (CV, 2013, p.160).

Podemos assegurar sem medo de errar, existe um território próprio da filosofia, quando se compreende que ela não é reflexão sobre algo, mas, sim que a filosofia cria, inventa, fabrica, gera seus produtos, seus conceitos. Eles não são dados, descobertos, achados. Para Deleuze, a filosofia tem sua tarefa específica e única. Ela é a única que trabalha com conceitos. Deleuze e Guattari escreveram: “A exclusividade da criação de conceitos assegura à filosofia uma função, mas não lhe dá nenhuma proeminência, nenhum privilégio, pois há outras maneiras de pensar e de criar, outros modos de idealição que não têm de passar por conceitos” (QÉPH, 2010, p.15), tais como vimos o pensamento científico e o pensamento artístico.

Além disso, Deleuze o tempo todo faz questão de destacar que, a filosofia não é contemplação, não é reflexão, não é comunicação, pois para contemplar seria necessário um mundo repleto de ideias prontas, acabas e eternas, tipo aquela da filosofia de matriz platônica; a filosofia não é reflexiva porque ninguém precisa da filosofia para refletir sobre nada. Deleuze mesmo afirma que seria cômico pensar que um matemático necessite de um filósofo para refletir sobre a matemática, ou qualquer outra coisa. Filosofia não é reflexão sobre a arte, o cinema, a música, a educação, o direito, a história, etc. Da mesma forma que, “a filosofia não encontra nenhum refúgio na comunicação, que não trabalha em potência a não ser de opiniões, para criar o consenso e não o conceito” (QÉPH, 2010, p.12). Essa perspectiva deleuziana bate de frente com a visão comum ou como um tipo de senso comum que atribui a filosofia o papel de reflexão sobre os problemas da realidade. Deleuze não aceita e nem acredita na visão que atribui a filosofia o papel de juíza no tribunal da razão. A filosofia para ele não está acima ou abaixo de nenhum tipo de conhecimento. Não existe uma superioridade ou inferioridade da filosofia em relação a ciência ou a arte. Não dá para aceitar a tolice da hierarquização dos conhecimentos tipo a elaborada pelo Comte.

Como representante de uma matriz de pensamento novo e inovador, Deleuze é um desconstrutor, demolidor, da filosofia da representação ou da filosofia da identidade. Ele produz uma filosofia denominada de filosofia da diferença, e combate essa filosofia da representação logo em seus primeiros trabalhos. O projeto da filosofia deleuziana não tem preocupação de descobrir se um filósofo tem ou não a verdade, para ele isso não é importante, a questão é se os conceitos criados pelo filósofo funcionam ou não. Além disso, ele não acompanha a compreensão clássica da verdade como correspondência da realidade, para ele isso é outro equívoco. O conceito, como produto do pensamento, como criação filosófica não é representação ou correspondência de nada. Segundo Deleuze e Guattari, o problema é que “os filósofos não se ocuparam o bastante com a natureza do conceito como realidade filosófica. Ele preferiram considerá-lo como um conhecimento ou uma representação dados, que se explicam por faculdades capazes de formá-los (abstração ou generalização) ou de utilizá-lo (juízo). Mas o conceito não é dado, é criado, está por criar; não é formado, ele próprio se põe em si mesmo, autoposição” (QÉPH, 2010, p.18).

Diante do que foi exposto até o momento, ainda temos duas questões que precisamos enfrentar: o que é pensar, ou o que é o pensamento? ou o que produz o pensamento?; a outra é o que é conceito? Pensamento e Conceito o que são? Sabemos que não é fácil responder essas questões, na verdade, não existe questão fácil na filosofia. O desafio é lançado o tempo todo, e precisamos ter coragem para colocar a maquinaria do pensar em funcionamento para descobrirmos as respostas. A preguiça mental e a covardia é que nos imobilizam. Rompendo com essas duas coisas teremos condições de compreender e explicar minimamente o que é uma e outra coisa.

O pensamento para Deleuze não é uma questão natural e nem uma questão de um método correto para pensarmos de forma clara e distinta. Nem Platão e nem Descartes. A filosofia deleuziana é antiplatonica e anticartesiana. Para ele o pensamento é involuntário, não é fruto de um desejo pessoal. O pensamento é intempestivo, surge como uma festa e é coisa rara. Ele é fruto de uma violência. Só pensamos quando sofremos uma agressão, e “todo pensamento torna-se [também] uma agressão” (DR, 2009, p.17). Para Deleuze, “o erro da filosofia é pressupor em nós uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pela verdade. […] a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pensamento […] A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. O acaso dos encontros, a pressão das coações é o que garante a necessidade daquilo que é pensado” (PS, 2010, p.15). Nessa busca pela verdade, o que o filósofo faz é interpretar, decifrar, explicar, traduzir. Isso faz o pensar um ato perigoso, por ser uma agressão e por retirada a pessoa do seu estado de estupor, de tranquilidade, de satisfação. O pensamento retira a pessoa de sua zona de segurança, de zona de conforto. O pensar é desterritorializante, pois nos deslocar de um dado território nos lançando para outros espaços inimagináveis. O pensar é sempre insatisfação, pensar é um ato de resistência. Assim, “não basta um boa vontade nem um método bem elaborado para ensinar a pensar, como não basta um amigo para nos aproximarmos do verdadeiro… As verdades da filosofia, [se é que existem], faltam a necessidade e a marca da necessidade. De fato, no diz Deleuze, a verdade não se dá, se trai; não se comunica, se interpreta; não é voluntária, é involuntária […] A busca da verdade é a aventura própria do involuntário. Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais importante do que o pensamento é o que “dá que pensar”; mais importante do que o filósofo é o poeta” (PS, 2010, p.89).

Assim, para Deleuze e Guattari, “o pensamento é criação, não vontade de verdade” (QÉPH, p.67) e na sequencia ele levanta o seguinte questionamento: “Que violência se deve exercer sobre o pensamento para que nos tornemos capazes de pensar?” (QÉPH, p.68). Ao responder, ele de forma taxativa nos diz: “o que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro, mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese, no diz Deleuze, implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas. Pensar é sempre interpretar, isto é, explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um signo” (PS, 2010, p.91). Após o encontro e a necessidade o pensamento entra em movimento de forma fortuita e inevitável, tipo o movimento peristáltico dos nossos órgãos internos.

Da mesma forma do pensamento, que é fruto da necessidade e do acaso do encontro, os conceitos como produtos do pensamento são criados para responder, interpretar, decifrar necessariamente um problema. Ele não é fruto do bel prazer do filósofo. O filósofo não acorda num dia de sol e pula da cama dizendo: hoje vou criar um conceito X. O conceito é criado por necessidade, é um reação concreta sobre a vida ordinária. Deleuze escreveu o seguinte: “os conceitos são singularidades que reagem sobre a vida ordinária, sobre o fluxos de pensamento ordinário ou cotidiano” (DRL, 2016, p.185). O conceito é um singularidade. Deleuze e Guattari acrescentam que “não há conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles” (PHQÉ, 2010, p.23), para compreendermos um conceito temos que necessariamente mapear seus componentes, ou como Deleuze prefere, temos que decifrar o conceito, pois todo conceito tem uma cifra de seus componentes. Os conceitos são no mínimo duplo e jamais um conceito tem um número infinito de componentes, pois seria o próprio caos. Por isso, o conceito sempre terá um número finito de componentes. Assim, Deleuze e Guattari estabelecem a natureza dos conceitos ou os critérios definidores dos conceitos no seu processo de criação. Quero destacar alguns pontos sobre a natureza do conceito para eles:

Os conceitos “não são jamais criados do nada”, “cada conceito remete a outros conceitos, não somente em sua história, mas em seu devir ou suas conexões presentes. Cada conceito tem componentes que podem ser tomados como conceitos” (QÉPH, p.27). E estes componentes são inseparáveis no conceito, o que define a sua própria consistência interna, seus componentes são distintos e heterogêneos, e isso produz zonas de vizinhanças entre eles.

Cada conceito é considerado como o ponto de coincidência, de condensação ou de acumulação de seus próprios componentes, e cada componente, nos dizem Deleuze e Guattari, é um traço intensivo, uma ordenada intensiva pura e simples singularidade. Então para Deleuze e Guattari, “o conceito define-se pela inseparabilidade de um número finito de componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevoo absoluto, à velocidade infinita… O conceito é bem ato de pensamento, pensamento operando em velocidade infinita” (QÉPH, p.29). E ainda acrescentam: “Os conceitos são centros de vibrações, cada um em si mesmo e uns em relação aos outro. É por isso que tudo ressoa, em lugar de se seguir ou de se corresponder” (QÉPH, p.31).

Por fim, os conceitos são personagens (QÉPH, p.32) e, por isso, a história da filosofia é, de acordo com Deleuze e Guattari, a história dos personagens conceituais vivendo um movimento de entrada e saída de cena. Com roupagem nova, com atuação diferente em cada momento da história. Segundo eles, “a história da filosofia é inteiramente desinteressante se não se propuser a despertar um conceito adormecido, a relançá-lo numa nova cena, mesmo a preço de voltá-lo contra ele mesmo” (QÉPH, p.101).

E é neste sentido, de uma história da filosofia como história dos conceitos, que Deleuze escreveu, em Diferença e Repetição, que:

“um livro de Filosofia deve ser, por um lado, um tipo muito particular de romance policial e, por outro, uma espécie de ficção científica. Por romance policial, queremos dizer que os conceitos devem intervir, com uma zona de presença, para resolver uma situação local. Modificam-se com os problemas. Eles têm esferas de influência em que, como veremos, se exercem em relação a dramas e por meio de uma certa crueldade. Devem ter uma coerência entre si, mas tal coerência não deve vir deles. Devem receber sua coerência de outro lugar” (DR, p.17). E Deleuze explica que por “ficção científica também no sentido em que os pontos fracos se revelam. Como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou que se sabe mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois, ou melhor, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois de ciência, mas de uma maneira que, infelizmente, sentimos não ser científica” (DR, p.18).

Para ele devemos ler os livros de filosofia como romance policial, ou como ficção científica, compreendendo os conceitos como personagens na trama do livro. O que esta em jogo também é a forma como Deleuze compreende a escrita filosófica. Para ele, a escrita deve produzir uma alegria em quem entra na aventura da leitura filosófica. Por isso, pensando a produção filosófica de Michel Foucault, em particular referindo-se sobre o livro Vigiar e Punir, Deleuze nos diz:

“Foucault nunca encarou a escritura como um objetivo, como um fim. É exatamente isso que faz dele um grande escritor, que coloca no que escreve uma alegria cada vez maior, um riso cada vez mais evidente. Divina comédia das punições: [assim se pode compreender o livro Vigiar e Punir. Ele é a Divina Comédia das punições. E segue sua argumentação, justificando que] é um direito elementar do leitor ficar fascinado até as gargalhadas diante de tantas invenções perversas, tantos discursos cínicos, tantos horrores minuciosos” … Deleuze explica o que significa essa alegria no horror. Segundo ele, essa postura vem de Vallès, ele “já invocava uma alegria no horror, característica dos revolucionários, que opunha à horrível alegria dos carrascos. Basta que o ódio esteja suficientemente vivo para que dele se possa tirar alguma coisa, uma grande alegria, não de ambivalência, não a alegria de odiar, mas a alegria de querer destruir aquilo que mutila a vida”. A alegria da resistência, da transgressão, da luta contra a situação que sufoca a vida. “O livro de Foucault, no diz Deleuze, está repleto de uma alegria, de um júbilo que se mistura ao esplendor do estilo e a política” (F, p.33). A escrita foucaultiana é uma escrita repleta de alegria, é um ato de resistência. Não podemos esquecer que o livro em questão, o Vigiar e Punir é um livro militante, de alguém que lutava contra a brutal situação dos presídios franceses do século XX [Foucault com certeza ficaria horrorizado com as condições dos presídios brasileiros]. Diante de um problema concreto, Foucault consegue neste livro apresentar uma nova visão sobre o poder, podemos afirmar que ele produziu ou construção um novo conceito de poder. Deleuze, num certo entusiasmo, nos diz: “Ele dever ter sido o primeiro a inventar essa nova concepção de poder, que buscávamos, mas não conseguíamos encontrar nem anunciar” (F, p.34). Poder como algo que “se exerce mais do que se possui, não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas” (F, p.35). De acordo com Deleuze, “Umas das ideias essenciais de Vigiar e Punir é que as sociedades modernas podem ser definidas como sociedades disciplinares, mas a disciplina não pode ser identificada com uma instituição nem com um aparelho, exatamente porque ela é um tipo de poder, uma tecnologia, que atravessa todas as espécies de aparelhos e de instituições para reuni-los, prolonga-los, fazê-los convergir, fazer com que se apliquem de um novo modo” (F, p.35). Essa inovação conceitual só foi possível porque Foucault tinha um problema concreto para pensar, não um problema novo, mas um problema mal colocado, mal resolvido. Pois, “na filosofia, não se cria conceitos, a não ser em função dos problemas que se consideram mal vistos ou mal colocados” (QÉPH, p.28), e quando ela faz este movimento criador, a filosofia inventa também “modos de existências ou possibilidade de vida”, numa perspectiva bem Nietzschiana (QÉPH, p.88).

Agora vamos entrar na última parte dessa nossa conversa sobre Deleuze, arte e ato de resistência. É preciso dizer que o debate ou construção do conceito deleuziano de resistência carrega uma grande dificuldade, pois não foi desenvolvido de forma sistemática em uma ou mais obras do Deleuze, esta pulverizado no conjunto de sua produção filosófica. E é visível que nesta produção conceitual Deleuze articula o tema da resistência em dois campos:

  1. O conceito resistência liga-se ao campo da política: poder, sociedade de controle, disciplina.

  2. Deleuze faz também uma assimilação do ato de resistência e o ato de criação ao campo da estética. Porém,  não podemos esquecer o que foi dito no início dessa conversa, estética não é filosofia da arte, pois, quando Deleuze pensar a arte não faz tradicionalmente filosofia da arte, compreendida como uma reflexão sobre a arte. Para compreendermos de forma preliminar o que Deleuze faz, vou centralizar nossa analise em dois textos: O que é o ato de criação? e o Post-scriptum sobre as sociedades de controle.

Como vimos, para Deleuze, a filosofia não é um ato de comunicação, assim ter uma ideia, em todas as formas (artístico, científico, filosófico), também não é da ordem da comunicação, pois “a comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação” (DRL, p.339) e a informação “é um conjunto de palavras de ordem. Quando lhes informam, estão dizendo aquilo em que vocês supostamente devem acreditar” (DRL, p.339). Quando querem nos controlar, ou propor mudança de rumo na vida, ou devir nosso modo de agir, nos dizem que precisamos nos informar sobre isso ou aquilo. É como se quisessem dar um ordem, você precisa se informar para agir melhor. O melhor exemplo de informação como ordem, como comunicação, são as declarações policiais. Deleuze nos diz que: “As declarações de polícia são chamadas, com razão, de comunicados. Comunicam-nos informação, dizem-nos aquilo em que supostamente somos capazes de acreditar, ou em que devemos acreditar, ou em que somos obrigados a acreditar. Nem mesmo acreditar, mas fazer como que se acreditássemos. Não nos exigem acreditar, mas que nos comportemos como se acreditássemos. É isso a informação, a comunicação e, independentemente dessas palavras de ordem e de sua transmissão, não há informação, não há comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle” (DRL, p.339-40). E não podemos esquecer que estamos vivendo numa sociedade de controle.

Deleuze escreveu um artigo, publicado em maio de 1990, sobre a sociedade de controle. Nele descrever em três pontos o desenvolvimento das sociedades de soberanias, passando pelas sociedades disciplinares até chegarmos as sociedades de controle. Mostra a brilhante analise de Foucault, no primeiro ponto a perspectiva histórica, o segundo a lógica de funcionamento e, no terceiro ponto, o programa da sociedade de controle. Antes desse artigo, Deleuze proferiu uma conferência para um grupo de cinéfilos, cineastas, críticos de cinema e amantes da sétima arte, no dia 17 de março de 1987, e que tinha como título original “Avoir une idée por cinéma“, posteriormente foi transcrita e publicada numa revista com o título “O que é o ato de criação?”. Essa conferência é de fácil acesso na rede mundial de computadores, vocês podem ver e ouvir Deleuze nessa palestra ainda hoje. São as vantagens de nossa época. E nessa palestra ele nos diz:

“Entramos em uma sociedade de controle que são definidas muito diferentemente das sociedades disciplina. Os que velam pelo nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de confinamento. Isso tudo, as prisões, as escolas, os hospitais, já são locais permanentes de discussão. Não seria melhor expandir os atendimentos a domicílio? … Não haveria outros meios para punir as pessoas, tirando as prisões? As sociedades de controle não mais passarão por meios de confinamento. Nem mesmo pela escola… (DRL, p.340-1). O certo é que, nos diz o filósofo francês, “encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um interior, em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc.. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, reformar o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares … Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas” (CV, p.224). “Um controle não é uma disciplina” (DRL, p.341), mas a informação é a base do sistema. Por isso, Deleuze nos diz: “vamos supor que a informação seja isso; o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso em uma dada sociedade” (DRL, p.341). Não bastaria produzir uma contrainformação para neutralizar o controle, neutralizar a ordem de comando. Para o pensador francês, “o que é preciso constatar é que a contrainformação nunca foi suficiente para fazer o que quer que seja” (DRL, p.341). A contrainformação não incomoda o poder. Ela em si mesmo é infrutífera, é inócua, é estérea. Entretanto, e isso é muito importante, a “contrainformação só é efetiva quando devém, ou quando ela é, um ato de resistência. Mas não podemos esquecer o ato de resistência não é informação e nem contrainformação. Da mesma forma, que a obra de arte, produto de um ato de criação, não tem nada de ato de comunicação. “A obra de arte não é um instrumento de comunicação”, no diz Deleuze. Não é e nem tem a menor informação. A arte, para Deleuze, é ato de resistência.

“Há, nos diz ele, uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Aí, sim ela tem algo a fazer com a informação e com a comunicação, a título de ato de resistência” (DRL, p.341).

E, na sequência de sua palestra “O que é ato de Criação”, Deleuze questiona:

“Que entrelace misterioso é esse entre uma obra de arte e um ato de resistência, visto que os homens que resistem não tem nem o tempo nem, as vezes, a cultura, ambos necessários para se ter o menor entrelace com a arte?” (DRL, p.342).

E ele responde de forma taxativa: NÃO SEI.

Mas, mesmo dizendo ignorar qual seria esta misteriosa ligação, Deleuze sinaliza um tipo de resposta provisória. Ele lembra de uma definição de arte de Malraux, que numa sentença simples afirmar: “a arte é a única coisa que resiste à morte” (DRL, p.342). E mesmo não sendo somente ela a resistir é daí que temos, para Deleuze, “o entrelace tão estreito entre o ato de resistência e a obra de arte. Nem todo ato de resistência é uma obra de arte, embora, de uma certa maneira, ela o é. Nem toda obra de arte é um ato de resistência e, no entanto, de uma certa maneira, ela o é” (DRL, p.342).

Arte e resistência vivem um tipo mágico de dança pela vida. Resistência é re-existência. Arte e resistência são as únicas coisas que resistem à morte, pois, como escreveu Deleuze, “o ato de resistência resiste à morte sob a forma de uma obra de arte ou sob a forma de uma luta dos homens” (DRL, p.342) pela vida.

O ato de resistir aos regimes fascista, na luta, na insurreições, na busca de uma linha de fuga, para construirmos nova vida superando as crises. Só os resistentes vivem no mundo, fazendo da vida uma obra de arte. Como escreveu o romancista Dan Brawn, em seu último livro, Origem: “Só existe um modo de triunfar sobre a morte: tornando nossa vida uma obra-prima” (2017, p.299).

Numa entrevista recente, a professora da UFMG Maria Esther Maciel, no lançamento de uma revista de literatura e arte que se propõe como instrumento de resistência às radicalizações do mundo contemporâneo, ela afirmou que “a literatura possibilita vasculhar as dobras da realidade”, linguagem marcadamente deleuziana. E, ela justifica que lançar uma revista focando exclusivamente produções literárias e artística foi motivada por “uma necessidade de estabelecer posição frente à situação que predomina no pais”. E que posição é essa? Questiona a professora Maciel. “É a de tomar a literatura e as artes como um ato de resistência ao que está acontecendo no Brasil e, também, no mundo”. Só existe resistência como luta contra algo concreto, não existe resistência abstrata. Por isso, a literatura e as artes lutam contra o estado de coisa que estamos vivenciando. “Trata-se de uma posição contra o dogmatismo, contra a polarização, contra a mediocrização; trata-se de uma maneira de resistir a um cenário de intolerância, de desmandos. Penso que estamos muito intoxicados de realidade, então a literatura surge como esse espaço para o exercício da imaginação, da liberdade, da multiplicidade, fora dos cerceamentos ideológicos, da polarizações” binárias, de uma falsa moralidade. Arte como ato de resistência. Literatura como uma arma para combater a tentativa de planificação do pensamento.

Essa entrevista da professora Maciel me fez lembrar de uma frase, que é uma palavra de ordem do movimento de maio de 1968: “Um pouco de possível, senão eu sufoco” (DRL, p.246). Este grito de socorro, quase dilacerante, atribuída a Michel Foucault nas redes sócias e, até mesmo, em alguns textos acadêmicos expressa uma posição de resistência ao que Maciel chamou de intoxicação de realidade, a realidade sufocando a vida. “Um pouco de possível, senão eu sufoco” é a constatação que estamos sufocados de realidade proto-fascista. A literatura e as artes, quase sempre perseguidas e censuradas, possuem uma potência desintoxicaste. Ela nos oferece um folego saudável. A literatura é saúde para a vida sufocada por uma realidade adoecida e debilitada. É possível criar linhas de fuga para escaparmos dessa situação e essa possibilidade está ligada a tripla definição de escrever: “escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar” (F, p.53). Mas, para exercer essa tripla função é necessário conectar três pontos: a criatividade, a mutação, a resistência. A arte reinventa a realidade, vasculhando as dobras dessa realidade sufocante. A arte é ato de resistência.

Para finalizar, assim como existe um interlace entre arte e ato de resistência, existe também uma conexão entre arte e filosofia. Como frutos do pensamento, que por sua vez é fruto de uma agressão. Arte e filosofia devem agredir para fazer pensar. Deleuze, em seu livro sobre Nietzsche, expõe esta posição da filosofia como agressora. Ele escreveu: A filosofia [como ato de resistência] “não serve nem ao Estado nem  à Igreja, que tem suas próprias preocupações e interesses. A filosofia não serve a qualquer poder estabelecido”. Ela é sempre instituinte, processo, devir.  “A filosofia serve para afligir. A filosofia que não aflige ninguém e não contraria ninguém não é uma filosofia”. No mesmo sentido, podemos dizer que a arte contemporânea também tem esse papel. Numa ressonância incrível com essa ideia nietzschideleuziana, podemos ouvir numa narrativa no início do quarto episódio da segunda temporada da série “13 reason why”, a seguinte definição: “uma obra de arte só é boa se surgir da urgência, da necessidade, da carência. Pode ser uma necessidade política, pessoal, ou, idealmente, ambas. A arte deve confrontar, agredir. Deve chocar e assustar você”. Parece até que o cineasta esta descrevendo a visão deleuziana de filosofia.

Filosofia e arte estão conectadas, são potencias para agredir e não para consolar ou agradar. Desta forma que podem servir como ato de resistência.

Isto basta para começo de conversa.

Muito obrigado!

[Palestra ministrada, dia 21 de Maio de 2018, no Ciclo de Palestra do Projeto de Extensão na Universidade Estadual de Goiás – Campus Goianésia.

O desenho foi produzido pelo meu amigo Nertan e enviado para ilustrar esse texto, o titulo do desenho é Resistência, quero deixar aqui meu agradecimento a ele].

REFERÊNCIAS:

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos – PS.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição – DR.

DELEUZE, Gilles. Dois regimes de loucos – DRL.

DELEUZE, Gilles. Conversações – CV.

DELEUZE, Gilles. Foucault – F.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. – NF.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? – QÉPH.

BROWN, Dan. Origem. São Paulo: Arqueiro, 2017.

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