Circula pelas redes sociais um artigo intitulado “Os sexalescentes do Século XXI”, atribuído a Miriam Goldenberg, texto bem escrito, que à primeira vista, tem uma doçura e leveza encantadora, porém, após ler e compartilhar, um amigo me fez um questionamento: não existem subliminarmente neste texto uma defesa a reforma da previdência? Essa indagação acertou-me com uma pedrada na cabeça, a doçura inicial foi se perdendo e em seu lugar surgiu um gosto amargo na boca. Após essa intercessão violenta, fui reler o artigo de Goldenberg, e numa segunda vista, meu desejo foi “descompartilhar” o que antes havia compartilhado. Como ensina Deleuze, só pensamos quando somos violentados por um signo, ele serve de um intercessor na produção do pensar, e foi exatamente o que aconteceu, o signo questionador do meu amigo colocou meu pensamento em movimento. Aqui quero compartilhar um pouco do que pensei após uma leitura mais atenta. Podemos começar com algumas indagações: A quem interessa essa visão romântica dessa nova faixa etária? O que esconde esta fetichização dos sexagenários? Quais foram os perversos e amargos “não-ditos” deste doce e suave veneno? Não quero ser injusto e nem quero cometer uma violência ao objetivo da autora, pois ela deixa claro logo no inicio que essa nova faixa etária social, o sexalescente, está restrito a um grupo social que teve uma vida razoavelmente satisfatória. Assim, os advogados do texto poderiam dizer que o artigo não tem pretensão universalizante, que ela está apenas sinalizando para uma mudança singular de um grupo social dentro do continente Brasil. Goldenberg está falando de uma transformação comportamental num brasil e não do Brasil. Porém, inicialmente responderia que ela poderia e deveria ter dado ênfase a essa singularidade de sua análise, eliminando assim o risco dos leitores, deste mundo apressado e dinâmico das redes sociais, cometerem o equívoco de generalizar o que não é generalizável. A própria comparação com a adolescência é no mínimo, por uma lado, temerária; e, por outro, apenas revela o que sabemos a adolescência também, quanto foi “inventada”, era prerrogativa de uma elite, os filhos dos trabalhadores do campo ou da cidade saiam da infância para o mundo adulto do trabalho. Hoje naturalizamos o que não é natural, pois a divisão ou classificação do mundo social por idade na forma que conhecemos é coisa recente. Não existe dúvida que a idade e o sexo são princípios de classificação social, pois as comunidades tribais já utilizavam desse instrumento para fazer sua divisão social do trabalho, entretanto, idade e sexo não são coisas ou objetos dados na e pela natureza, são construções sociais, formas de atribuir funções e responsabilidades dentro de uma dada sociedade. Então não podemos, sem cometer anacronismos, atribuir a nossa classificação etária para povos muito antigos. Essas divisões que conhecemos e compartilhamos são nossas, foram convenções produzidas por nossa atual sociedade, as divisões numerais da escala de idade foram categorizadas nominalmente: infância (0 a 11), adolescência e juventude (12 a 21), fase adulta (21 a 60) e Idosos (ou terceira idade, depois dos 60 até o fim da vida), as fronteiras entre essa classificação são legalmente estabelecidas, pois em cada fase temos responsabilidades diferentes. No Brasil temos até dois estatutos específicos: O Estatuto da Criança e Adolescente e o Estatuto do Idoso (ou da terceira idade). Além dessa classificação etária parametrizada pela legislação, temos recentemente uma divisão geracional, ainda não conhecida por todos e para muitos não existe clareza quando começa uma geração e termina a outra. Essa classificação não é “universal”, para exemplificar, podemos ver a classificação estadunidense das gerações da seguinte forma: Baby Boomers – 1945 – 1964; Geração X – 1965 – 1979; Geração Y – 1980 – 1994; Geração Z – 1995 – Atual; e a classificação brasileira que segue a seguinte divisão: Baby Boomers – 1945 – 1964; Geração X – 1965 – 1984; Geração Y – 1985 – 1999; Geração Z – 2000 – Atual. Essas definições não são naturais, são convenções sociais que funcionam dentro de uma maquinaria social especifica. Pode parecer ou até soar estranho, mas a contagem dos anos para definir a idade das pessoas nem sempre foi importante. Não existia uma preocupação em registrar os filhos no momento do nascimento e nem uma prática generalizada de comemorar o dia do aniversário com festas. Essa prática de registro de nascimento só se consolidou socialmente no século XX, e foi necessário um dispositivo legal para obrigar os pais a registrarem seus filhos, entretanto, ainda na metade do século passado era comum pessoas nascerem e serem registradas depois de muitos anos, por isso não é incomum mesmo hoje encontrar pessoas com divergência de datas de nascimento. Antes de existir o registro oficial num cartório civil, o que tínhamos era o registro de batismo nas paróquias. Este documento tinha uma função social importante, e até hoje é usado como documento para efeitos de aposentadoria. Porém, mesmo os batistérios não são tão exatos, pois muitas comunidades só recebiam as visitas dos padres para realizarem os batizados em períodos muito longos até mais de anos. Algumas vezes os pais não tinham certeza do dia, mês e ano do nascimento do filho, assim colocavam uma data qualquer. Mas isso, principalmente nas classes sociais baixas, pois na elite a história era outra. O historiador francês, Philippe Ariès, em seu livro História Social da Criança e da Família nos mostra como a sociedade se transformou em relação ao cuidado com as crianças a partir do século XVIII, e como gradativamente essa preocupação, o cuidado e carinho com elas foi traduzido na prática de registrar o nascimento como uma data relevante e especial. Este comportamento e sentimento foram ganhando corpo social. Ariès revela que até o século XVIII a infância era curta, com o surgimento dessa nova pratica de cuidado com a infância, temos uma dilatação da infância, porém não para todas as crianças, apenas para os filhos homens da nobreza e da burguesia, pois as crianças pobres e as mulheres continuavam com uma infância reduzida. Os filhos dos trabalhadores e dos camponeses, que não frequentavam as escolas, rapidamente entravam para o mundo do trabalho, e as mulheres de ambas as classes após a “maturidade corporal” (compreenda aqui ter a primeira menstruação) tinham seu casamento arranjado. Então a infância dilatada no século XVIII e a adolescência inventada no século XX não envolviam todos, apenas uma porção da sociedade, então essa nova faixa etária, o sexalescente, apenas repete o que sabemos da infância e da adolescência, é um fenômeno restrito a um grupo social. Entretanto, poderíamos esperar uma atitude diferente de alguém que resolveu registrar essa inovação, pois temos um volume de conhecimento suficiente que nos habilita fazer uma crítica/teoria e uma clínica/prática adequada da nossa realidade sociocultural. A autora poderia sem economia de palavras deixar claro que apenas uma elite participa dessa mudança etária. Assim, poderíamos levantar outras questões: Quem são os excluídos deste paraíso etário? Onde podemos encontrar os excluídos? Não é difícil responder a essas questões, basta olhar com atenção. Mas, no fundo o que podemos perceber mesmo é que a criação dessa nova faixa etária apenas revela ainda mais a separação abismal existente na vida social brasileira, é mais um elemento de distinção social. Se este novo grupo, os sexalescentes, “nem sonham em aposentar-se. E os que já se aposentaram gozam plenamente cada dia, sem medo do ócio ou solidão”, a maioria dos sexagenários, os sobreviventes, ao contrário, pensam e sonham se vão conseguir um dia se aposentar. Longe do paraíso dos sexalescentes, os pobres sexagenários chegam a essa idade porque são fortes e resistentes, pois, como se diz, “no Brasil, pobre vive é de teimoso”, a luta diária pela sobrevivência impõe um esgotamento físico e mental incalculável, podemos até dizer que a desigualdade social se revela de forma mais dura para os sexagenários, que foram abandonados pelo Estado durante a vida, e são jogados a própria sorte na velhice. Fico imaginando a reação dos sexagenários que labutaram nos canaviais, nas carvoarias, nas rodas de quebradeiras de coco, na floresta amazônica, nas industrias insalubres, etc… ouvindo essa alegre idade dos sexalescentes. Nas grandes cidades brasileiras, se estivermos atentos, podemos notar homens e mulheres com cabelos brancos e rostos marcados pelas décadas de trabalho brutal puxando carroças coletando material reciclável, não num ativismo ambiente, mas, na luta pela sobrevivência real. Os sexalescentes que não sonham com a aposentadorias são exatamente o grupo social que não vão sofrer nada, caso essa famigerada reforma da previdência seja aprovada na formatação perversa que tramita na Casa Legislativa Brasileira. Não podemos ser seduzidos pelo canto de seria do artigo, que produz uma visão romantizada do envelhecimento no Brasil. Os sexagenários de hoje não são muito diferentes do passado, são homens e mulheres esgotados, sugados de suas forças e vitalidades depois de décadas de muito trabalho. Não existe uma geração do sessenta/setenta anos de idade que conseguiu chegar hoje “com boas saúde física e mental”, como escreve a autora, mas apenas uma elite que teve a sorte de ter uma vida razoavelmente satisfatória e continua com força e vitalidade para seguir a vida, e por isso se recusa o rótulo de velho, e quer uma distinção social. O mérito do texto é sinalizar que existe mais uma distinção social em construção no Brasil, e com isso temos também a produz de um novo fetiche social, o sexagenário deseja ser sexalescente.
Agradeço ao amigo e colaborador Nertan Silva-Maia pela ilustração intitulada SEXALESCENTE?
Comments